Doutor em Direito Eleitoral explica 'populismo' por trás da proposta de usar dinheiro da eleição para vítimas do RS

Ajudar as vítimas é essencial, mas há outras fontes que podem ser cortadas sem impedir a realização de eleições justas

Doutor em Direito Eleitoral explica 'populismo' por trás da proposta de usar dinheiro da eleição para vítimas do RS
Fundo eleitoral e fundo partidário são as principais formas de financiamento de eleições no Brasil / Imagem: Reprodução/TRE-SP
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É essencial ajudar as vítimas da tragédia socioambiental que assola o Rio Grande do Sul, estado em que mais de 440 (de um total de 497) municípios foram de alguma forma atingidos pelas enchentes de maio de 2024. No entanto, é "necessário inteligência e esforço coletivo para que as soluções populistas e fáceis não criem ainda mais problemas no futuro", comentou o Doutor em Direito Eleitoral pela UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina) Marcelo Peregrino Ferreira.

É o caso da "populista medida de destinar os recursos dos fundos das eleições para as vítimas", diz Peregrino Ferreira. Trata-se de uma pauta popular à 1ª vista, mas sem qualquer consistência técnica e com efeitos que provavelmente seriam bastante indesejados para a maior parte da população. Nas palavras do especialista na questão, "embute consequências muito ruins e empecilhos constitucionais".

"Há outras fontes que podem ser cortadas sem a grave consequência de impedir a realização de eleições livres e justas", diz ele.

Peregrino Ferreira publicou uma didática explicação sobre o assunto. No Correio Sabiá, transcrevemos o comentário, que pode ser lido a seguir. Ainda neste conteúdo (mais abaixo), separamos em tópicos (formato de lista) os motivos pelos quais não se deve destinar os recursos das eleições para o Rio Grande do Sul.

"O primeiro obstáculo é que tal medida somente poderia ser viabilizada por meio de lei, em face da destinação específica desses recursos. A outra dificuldade nessa ingênua proposição é a regra do Art. 16 da Constituição Federal de 1988 que proíbe a alteração do processo eleitoral, mesmo por lei, nas eleições ocorridas até um ano da data da sua vigência [da lei], conhecido como o 'princípio da anualidade eleitoral'."

"Admitamos que haja um grande concerto nacional para que tal ocorra. Estaríamos sem dinheiro para as eleições, portanto. Quem há de pagar o custo do regime democrático que se dá com a realização de eleições em que os candidatos mostram suas propostas para as pessoas escolherem? Eleição custa dinheiro e esse é um fato que não pode ser olvidado."

"Sem recursos, os candidatos com dinheiro, com certeza, teriam uma vantagem competitiva enorme, criando uma desigualdade ainda maior na representação, com relevo para as verbas das cotas dos negros e das mulheres."

5 motivos para não cortar a verba de eleições em ajuda ao Rio Grande do Sul

Em lista, os motivos pelos quais o dinheiro destinado aos partidos e às eleições não deve ser aplicado no socorro às vítimas no Rio Grande do Sul:

  • A medida só poderia ser viabilizada por meio de lei, por causa da destinação específica desses recursos;
  • Mesmo assim (ou seja, mesmo por lei), uma regra do Art. 16 da Constituição Federal proíbe alterar o processo eleitoral em até 1 ano da data da eleição. É o “princípio da anualidade eleitoral”. Ou seja, já não daria tempo.
  • Supondo que todos esses obstáculos quase intransponíveis fossem superados: estaríamos sem dinheiro para as eleições. (Você tem todo o direito de não gostar de candidato algum, mas há que concordar que a democracia demanda que propostas possam ser expostas à sociedade –e isso tem custo).
  • Se não tiver dinheiro público, os candidatos com dinheiro ganham enorme vantagem competitiva. Vira uma gigantesca desigualdade representativa.
  • Essa desigualdade fica ainda maior quando consideramos as verbas das cotas para negros e mulheres.

Visão do autor desta reportagem

Nesta seção, não temos pretensão de imparcialidade, mas sim de honestidade. Queremos te dizer o que pensamos sobre este assunto, porque consideramos que, ao saber disso, você estará ciente (de maneira transparente) sobre nossa posição a respeito de um tema tão complexo e importante.

Primeiro, é essencial ajudar as vítimas da tragédia no Rio Grande do Sul de diversas maneiras, com recursos provenientes de diferentes fontes. A grande questão, no entanto, entre querer relacionar a verba eleitoral com a ajuda às vítimas é não passa de demagogia.

Políticos oportunistas (costumeiramente ligados a partidos que representam setores sociais economicamente mais endinheirados) se aproveitam de um anseio amplamente popular (que é reduzir verbas de políticos e partidos) para propor exatamente essa medida, vinculando-a à ajuda na tragédia.

Demagogia é isso: uma suposta demonstração de bons sentimentos; uma utilização de uma pauta e/ou situação como artifício político, manipulando os interesses da população (porque, afinal, a proposta de cortar de fundo eleitoral soa quase como uma canção para a maioria da população, mas seu efeito seria o oposto ao desejável no longo prazo para a maioria das pessoas).

Trata-se de uma prática usada para conseguir o poder apelando para medos, emoções ou esperanças. É como um líder ganha popularidade numa democracia ao explorar essas emoções, junto à ignorância popular sobre um assunto.

É por essas e outras que o Correio Sabiá concorda integralmente com o Doutor Marcelo Peregrino Ferreira nesta matéria e decide expor a você, leitor/a, de maneira transparente.

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