Como está a 'PEC das Praias' no Congresso?
Texto pretende acabar com os terrenos de marinha, que são áreas costeiras que sofrem influência de maré
*Atualizado em 3.dez.2024, às 21h11.
Conhecida como "PEC das Praias", a PEC (proposta de emenda à Constituição) nº 3/2022 deve voltar a ser discutida no Senado nesta quarta-feira (4.dez.2024). O texto está na pauta da CCJ (Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania).
Anteriormente, a mesma CCJ discutiu a PEC das Praias no dia 27 de maio de 2024, em audiência pública. Ambientalistas dizem que a PEC tem diversos problemas para o meio ambiente e abre caminho para a privatização de praias.
- (Inicialmente publicado no dia 27 de maio de 2024, este conteúdo do Correio Sabiá recebe atualizações constantes para te manter bem-informado/a sobre o assunto).
Além de "PEC das Praias", o mesmo texto também foi chamado de "PEC da Cancún brasileira" (referência ao balneário turístico no México). 🇲🇽 Também há quem fale numa tentativa de "albanizar" o Brasil (numa referência aos balneários privados da Albânia). 🇦🇱
O que é a PEC das Praias?
A proposta trata dos chamados "terrenos de marinha", que são áreas costeiras que vão do ponto médio da maré alta do ano de 1831 até uma largura de 33 metros avançando para dentro da terra. Meio difícil, não? Mas o que você precisa saber é que a propriedade dessas áreas é da União.
Exemplo: parte da orla da Zona Sul do Rio de Janeiro está em terrenos de marinha. (Por isso, os quiosques precisam ser concessão pública –e não podem ser propriedade de alguém).
- *Note que "terrenos de marinha" não são terrenos da Marinha, braço das Forças Armadas. Estamos falando de coisas totalmente diferentes.
A PEC das Praias "redistribui os terrenos de marinha entre estados, municípios e agentes privados, alterando a Constituição e impactando as finanças da União", segundo informações do Senado.
Ou seja, a proposta permite a transferência total desses terrenos da União para os estados, municípios e agentes privados. Assim, passa a atribuição (da Uniã0) para outros agentes (inclusive privados). Um resultado possível, segundo ambientalistas: na prática, praias poderiam ser privatizadas. Mas como? Veja abaixo.
Como a "privatização" de praias pode ocorrer? ⤵️
É verdade que o texto não permite a privatização do espaço de areia e das águas. Isto é proibido e continuaria sendo. Aliás, depois da repercussão, isso passou até a constar explicitamente na PEC.
No entanto, a crítica principal consiste na possibilidade de os potenciais proprietários (privados) desses terrenos restringirem o acesso à praia, tornando praticamente impossível chegar à zona "pública". ➡️ Na prática, isso é privatização.
Não para aí. Ambientalistas dizem que o problema vai muito além da "privatização". É também uma questão de erosão costeira, entre outros desdobramentos.
- Neste conteúdo, mais abaixo, explicamos vários pontos controversos ao mesmo tempo em que incluímos sugestões de melhoria de professoras renomadas.
A iniciativa da PEC é do deputado federal Arnaldo Jordy (Cidadania-PA). Na Câmara, foi aprovada em fevereiro de 2022. No Senado, a relatoria é do senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ), favorável ao texto.
Assista abaixo à audiência no canal do Senado no YouTube:
Entenda a PEC das Praias
Os terrenos de marinha são as áreas situadas na costa marítima (inclusive aquelas que contornam as ilhas, as margens dos rios e das lagoas) em faixa de 33 metros medidos a partir da posição da maré cheia.
Ou seja, entende-se que são da União os terrenos onde a maré alcançava quando estava cheia, numa faixa de 33 metros. Esses "terrenos de marinha" abrangem praias, ilhas, mangues, margens de rios e lagoas que sofrem influência da maré.
- De novo: os terrenos de marinha não têm nada a ver com a Marinha, das Forças Armadas.
Quem é contrário à PEC diz que o domínio da União sobre a costa marítima é estratégico para garantir objetivos de desenvolvimento econômico, social e ambiental, sendo uma questão de soberania nacional.
Nessas faixas costeiras estão localizados biomas fundamentais para a prevenção de tragédias ambientais e para medidas de adaptação às mudanças climáticas.
Por isso, além de abrir caminho para privatizar praias, ambientalistas dizem que a PEC pode trazer riscos para a conservação de áreas costeiras e ecossistemas marinhos e para a sobrevivência de comunidades tradicionais (como, por exemplo, aquelas que vivem da pesca artesanal).
Também na faixa costeira há indústrias essenciais para a atividade econômica da União (óleo e gás, eólicas, pesca industrial e artesanal, cabeamento de internet que chega ao país pelas praias, entre outras).
"A proposta traz uma abertura legal para ocupação irregular de áreas costeiro-marinhas, desmatamento de manguezais e restingas e privatização de áreas públicas", afirmou o membro da RECN (Rede de Especialistas em Conservação da Natureza) e professor do Instituto do Mar da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), Ronaldo Christofoletti, num comunicado enviado à imprensa e recebido pelo Correio Sabiá.
A RECN é um grupo multidisciplinar com cerca de 80 profissionais brasileiros e alguns do exterior. São juristas, urbanistas, biólogos, engenheiros, ambientalistas, cientistas, professores universitários. Criada em 2014, é iniciativa da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Natureza.
Tipos de ocupação em áreas de marinha
Há diferentes tipos de ocupação em áreas de marinha, com distintos perfis, que exigem variados tratamentos. Exemplos:
- Áreas urbanizadas em cidades à frente do mar (como Tibau do Sul, no Rio Grande do Norte);
- Empreendimentos imobiliários, turísticos e ocupações de veraneio (como a Praia do Forte, na Bahia);
- Instalações de infraestrutura estratégica e outras atividades econômicas (como São João da Barra, no Rio de Janeiro);
- Ocupações de baixa renda e de comunidades tradicionais (como a Favela Vila da Barca, no Pará);
- Ecossistemas de alta relevância ambiental (como a Reserva Biológica de Guaratiba, no Rio de Janeiro).
Eis o que disse em audiência pública no Senado neste dia 27.mai.2024 a Doutora em Direito do Estado e secretária adjunta de Gestão do Patrimônio da União, Carolina Gabas Stuchi:
"Qual a situação atual da demarcação dessas áreas? A Constituição declara esses bens como da União, mas é preciso um processo de demarcar para que a gente possa ter clareza de até onde vão. Isso, historicamente, foi um processo fragilizado dentro da SPU e que nos últimos anos a gente vem conseguindo demarcar muito mais."
"Então, a gente tem hoje demarcados na costa brasileira 15 mil km, de posicionamento de linha, e estima-se que a gente esteja falando de 48 mil km considerando as reentrâncias, especialmente nos estados do Pará e do Maranhão, o que adentra 2 estados que pertencem à Amazônia Legal, colocando um percentual altíssimo desses terrenos de marinha também na Amazônia Legal".
Estima-se que haja cerca de 2,9 milhões de imóveis em áreas de marinha no Brasil, sendo que atualmente estão cadastrados na SPU (Secretaria de Patrimônio da União) cerca de 565 mil.
"Ainda que a PEC fosse aprovada hoje, a gente teria um caos administrativo, um caos na gestão disso, porque teríamos que achar, cadastrar, todos os ocupantes desses quase 3 milhões de imóveis que ainda não conhecemos"
Carolina Gabas
Problemas da PEC 3/2022, que 'privatiza' praias
Basicamente, segundo a apresentação de Gabas, a PEC sobrepõe os interesses privados aos interesses públicos, o que é uma inversão da lógica que rege o Estado e o bem-estar comum.
Eis uma lista de problemas da PEC 3/2022, de acordo com a secretária adjunta de Gestão do Patrimônio da União:
- Favorece a privatização e o cercamento de praias
- Traz perda de receita para a União e para os municípios, em cerca de R$ 164 milhões ao ano, nas estimativas técnicas do governo federal
- Ameaça a sobrevivência de povos e comunidades tradicionais
- Intensifica conflitos fundiários
- Implica em custos não previstos da atividade portuária, que podem afetar equilíbrio de contratos e ser repassados aos usuários
- Restrringe o exercício das competências constitucionais da União
- Favorece a ocupação desordenada
- Ameaça ecossistemas costeiros, tornando-os mais vulneráveis aos efeitos das mudanças climáticas
- Contraria a legislação de outros países costeiros, que fazem movimento inverso: desapropriam áreas para proteção socioambiental
Sugestões de melhoria da legislação de terrenos de marinha
Como formas de aperfeiçoar a legislação (sem os mecanismos previstos pela PEC), a SPU sugeriu:
- Dar escala e agilidade ao processo de demarcação
- Reservar áreas para expansão urbana e de infraestruturas
- Preservar o interesse público em seus aspectos econômico, social e ambiental
- Separação de emendas constitucionais de avanços que podem ser feitos apenas por projetos de lei
- Simplificação da notificação de ocupantes de terrenos de marinha e dos instrumentos de destinação desses terrenos, com ocupações legítimas e transparentes
- Tornar mais justos os pagamentos de taxas, foros, laudêmio e remição de foro
- Institucionalizar a gestão compartilhada com estados e municípios
Marinez Scherer, professora da UFSC (Universidade Federal de Santa Catarina), mostrou modelagens científicas que corroboram a necessidade de defender terrenos de marinha.
"1cm de elevação do nível do mar significa mais ou menos 1 metro para dentro da terra. A gente está falando aqui de 33 metros"
Marinez Scherer
A pesquisadora mencionou uma plataforma –Climate Central– que projeta a elevação do nível do mar em qualquer lugar do mundo, com modelagem de áreas que estarão alagadas em 2050.
Exemplo: se o aquecimento médio do planeta chegar a 3ºC (já estamos num aumento de 1,5ºC), áreas como o Copabacana Palace estarão debaixo d'água.
- Caso você queira ver com seus próprios olhos as imagens, a explanação dela na audiêcia pública consta no vídeo acima, por volta dos 40min.
O que é o laudêmio e o que dizem os apoiadores da PEC 3/2022?
Defensores da PEC 3/2022, como o senador Flávio Bolsonaro, dizem que o texto vai trazer segurança jurídica a proprietários de terras, que hoje não têm plena posse de onde vivem.
Atualmente, cerca de 1/4 dos terrenos de marinha já são ocupados por pessoas ou empresas. No entanto, mesmo quem tem propriedade nesses terrenos não é considerado pleno proprietário, tendo que dividir com a União e pagar taxas.
É o caso do laudêmio, que é uma taxa patrimonial recebida pela União justamente por essas situações. Por isso, defensores da PEC também afirmam que a proposta vai acabar esse pagamento (e entendem que isso seria positivo).
Quem deve pagar o laudêmio? O laudêmio deve ser pago quando se vende ou transfere um imóvel em área de marinha. Para realizar a transferência, o vendedor do terreno (na maioria dos casos) deve pagar o laudêmio para obter a CAT (Certidão Autorizativa de Transferência) do imóvel e, então, poder efetuar a lavratura.
O que é o laudêmio? O laudêmio é o valor devido para compensar a União por ela não exercer o direito de domínio do terreno sempre que se realiza uma transferência domínio, promessa de transferência ou ocupação de imóvel da União.
Defensores da proposta também dizem que o texto vai facilitar investimentos e gerar empregos em áreas costeiras. Falam que não é verdade que haverá privatização de praias.
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