Da terra ao mar: o que a nova lei do licenciamento ameaça

A nova Lei Geral do Licenciamento enfraquece a proteção ambiental, ameaça a governança costeira e coloca em risco ecossistemas que abrigam e sustentam mais da metade da população brasileira

Da terra ao mar: o que a nova lei do licenciamento ameaça
Lama de rejeitos da barragem da Samarco alcança o oceano no Espírito Santo (2015): um exemplo concreto de como impactos gerados em terra atravessam rios, estuários e chegam ao mar. Sem licenciamento ambiental rigoroso, quem paga a conta é o oceano. / Imagem: Wikipedia
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*Por Luciana Yokoyama Xavier e Monique Torres de Queiroz

No Brasil, o rito do licenciamento ambiental data do início dos anos 1980 e carece de aprimoramento para atender às demandas e aos desafios atuais. Após mais de 20 anos de debate, a recém-aprovada Lei Geral do Licenciamento Ambiental falha em promover as inovações necessárias para suprir os desafios do licenciamento e coloca em xeque o grande objetivo do processo: conciliar desenvolvimento econômico-social com um meio ambiente equilibrado. Esse risco não se limita a florestas, rios e territórios terrestres; ele alcança também a zona costeira e os ecossistemas marinhos, que recebem os impactos acumulados de atividades realizadas em terra e no mar. 

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O licenciamento ambiental é um dos instrumentos mais importantes da política ambiental brasileira. Trata-se de um procedimento administrativo fundamentado em análises técnicas para avaliar a instalação e operação de atividades que usam recursos naturais ou que são efetivamente ou potencialmente poluidoras. Seu objetivo é conciliar o desenvolvimento econômico com a proteção do meio ambiente e garantia da qualidade de vida e saúde humana.

Tendo como antecedentes políticas estaduais da década de 70, o sistema de licenciamento ambiental federal é alicerçado na Política Nacional de Meio Ambiente (PNMA - Lei nº 6.938/1981) e consolidado com resoluções do Conama (Conselho Nacional de Meio Ambiente) que regulamentam o estudo e relatório de impacto ambiental (em 1986) e a audiência pública (em 1987); e padronizam etapas e responsabilidades do processo (em 1997). Adicionando ao arcabouço legal, a Lei Complementar 140/2011 regulamenta a competência compartilhada entre União, Estados e Municípios pelo licenciamento.

Linha do tempo dos principais marcos legais do Licenciamento Ambiental e da Avaliação de Impacto Ambiental no Brasil / Imagem: Sánchez e Fonseca, 2025

Se por um lado o princípio da descentralização formalizado na competência compartilhada leva a tomada de decisão para mais próxima da realidade local, por outro reforça o caráter fragmentado de muitas políticas públicas brasileiras. Há mais de duas décadas, estão em curso debates sobre a necessidade de uniformizar critérios e instituir uma Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Essa discussão se materializou inicialmente no Projeto de Lei nº 3729/2004, que, após anos de tramitação com a alcunha de “PL da devastação”, foi aprovado e convertido na Lei nº 15.190/2025 em 08 de agosto de 2025. 

A “Lei Geral do Licenciamento Ambiental” teve 63 trechos vetados pelo Executivo, justificados pela necessidade de garantir a integridade do processo de licenciamento, de respeitar os direitos de povos indígenas e comunidades quilombolas, de conferir segurança jurídica a empreendimentos e investidores e de incorporar inovações que tornem o licenciamento mais ágil sem comprometer sua qualidade. Agora, a lei deve retornar ao Congresso Nacional, quando os vetos forem apreciados. Este debate é o próximo passo necessário para se chegar a uma versão final da lei, marcando um novo capítulo na trajetória da política ambiental brasileira. 

O que dizem os especialistas? 

Dada a urgência do tema, sobretudo em ano de COP sediada pelo Brasil, fomos buscar informações sobre o que os especialistas na área de Avaliação de Impacto Ambiental acham da proposta. Para isso, fomos ao 7º Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental (CBAI) assistir à mesa redonda “Lei Geral do Licenciamento Ambiental: a reforma que precisávamos?”, que contou com a participação de nomes como Cristiano Vilardo (Ibama), Maurício Guetta (Avaaz), Moara Glasson (MMA) e Luís Enrique Sanchéz (USP). 

Mesa Redonda “Lei Geral do Licenciamento: A reforma que precisávamos?” no 7º Congresso Brasileiro de Avaliação de Impacto Ambiental. Da esquerda para a direita, Cristiano Vilardo (Ibama), Luis Enrique Sánchez (USP), Moara Giasson (MMA) e Mauricio Guetta (Avaaz) / Imagem: Álbum oficial do CBAI 2025

Organizado pela Associação Brasileira de Avaliação de Impacto, o Congresso ocorre a cada 2 anos e reúne profissionais de diversos setores que atuam na área do Licenciamento e Avaliação de Impacto Ambiental - da gestão pública, institutos de ensino e pesquisa, empresas empreendedoras e de consultoria e representações da sociedade civil - de todo o Brasil. A 7ª edição, realizada entre os dias 20 e 24 de outubro de 2025, em Brasília, reuniu 514 congressistas para discutir, celebrar e repensar os 50 anos de licenciamento ambiental no Brasil. 

É nesse cenário que a mesa redonda debateu a proposta de Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Para Maurício Guetta, o texto representa uma mudança perigosa nos fundamentos do direito ambiental brasileiro: abandona a lógica da precaução e do meio ambiente como bem coletivo e adota a presunção de boa-fé do empreendedor. Um dos principais problemas, segundo ele, é que a proposta não estabelece padrões nacionais mínimos de proteção. Estados e municípios ganham liberdade para definir suas próprias regras, o que pode gerar desigualdades, insegurança jurídica e flexibilizações motivadas por pressão política ou econômica. 

Um dos pontos de maior preocupação é a LAC (Licença por Adesão e Compromisso), que permite o licenciamento automático de atividades consideradas de baixo impacto, sem análise técnica detalhada. Para Moara Giasson, a lei não define claramente os critérios que determinam o que é um impacto não significativo, abrindo margem para uso indiscriminado da LAC –o que o professor Luís Enrique Sánchez (USP) chamou de “cartório de licenciamento ambiental”, onde a licença seria pouco mais que um documento autenticado. 

Ao mesmo tempo em que flexibiliza para alguns empreendimentos, a proposta limita a atuação do Estado em grandes obras ao impedir que licenças incluam condicionantes relacionadas a políticas públicas, como saúde, educação, transporte ou habitação. Isso afasta a responsabilidade dos empreendedores sobre os impactos sociais locais de seus empreendimentos. 

Outro ponto sensível, levantado por Sánchez, é o silêncio da lei sobre a garantia do direito à participação pública. Essa fragilidade da legislação atual que historicamente gera conflitos, judicialização e atrasos em projetos não foi objeto de melhora na nova lei do licenciamento. Muito pelo contrário, o texto atual parece ignorar os aprendizados dos 50 anos de licenciamento e mantém um modelo pouco transparente, contrariando a ideia de que decisões ambientais devem envolver quem é diretamente afetado. Da mesma forma, a proteção a territórios não titulados e a povos tradicionais é insuficiente, uma vez que a maior parte desses territórios permanece invisível na legislação. 

As ameaças ao oceano 

A nova Lei Geral do Licenciamento Ambiental também afeta diretamente a governança costeira no Brasil. Ela revoga o § 2º do art. 6º do Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (Lei nº 7.661/1988), que obrigava à apresentação de EIA (Estudo de Impacto Ambiental) e RIMA (Relatório de Impacto Ambiental) para obras e atividades que alterassem as características naturais da zona costeira. Com essa revogação, deixa de existir um dispositivo legal específico que exigia análise aprofundada para intervenções numa região estratégica para o país, que passa a ser submetida à regra geral de licenciamento –mais genérica, menos participativa e menos protetiva. 

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Os ecossistemas marinhos e costeiros têm papel central no enfrentamento da crise climática, na garantia de qualidade de vida e na manutenção de modos de vida de milhões de pessoas. Intervenções nesses ecossistemas, seja por ocupação urbana, avanço de infraestrutura ou por atividades em águas mais profundas, como a exploração de petróleo e a instalação de parques eólicos offshore, ainda que estratégicas, precisam passar por processos de licenciamento ambiental robustos, capazes de avaliar riscos e prevenir impactos. 

Mas os possíveis impactos ao oceano com a nova lei não se limitam à zona costeira e marinha. Como ressaltou a Enviada Especial para Oceano da COP30, a especialista Marinez Scherer, em artigo publicado no Capital Reset:

“Os ecossistemas terrestres e marinhos estão interligados. O desmatamento e a contaminação nos ambientes continentais impactam diretamente os ambientes marinhos."

Assim, ao flexibilizar exigências para empreendimentos agropecuários, portos, mineração e infraestrutura, a lei ignora que o oceano é o ponto final de praticamente todas as pressões ambientais geradas em terra. Segundo a especialista, quando se dispensa licenciamento ou se substituem estudos técnicos por autodeclarações, como na Licença por Adesão e Compromisso, abrem-se portas para aumento de sedimentos, poluição difusa, desmatamento de manguezais e comprometimento de nascentes e rios que desembocam no mar, criando um “perigoso mecanismo de degradação cruzada”.

Mas, então, como avançar para aprimorar o licenciamento? 

A conclusão da mesa redonda do 7º CBAI foi clara: o licenciamento ambiental precisa, sim, de atualização –mas uma reforma responsável, que fortaleça a transparência, a análise técnica, a participação social e a segurança jurídica para todos os envolvidos. Cristiano Vilardo (Ibama) lembrou que o licenciamento foi criado para prevenir danos irreversíveis, e não para ser um processo automático ou meramente burocrático. Por isso, qualquer reforma deve aprimorar, e não esvaziar, sua função de proteção. Reformar o licenciamento é importante, mas apenas se for para fortalecê-lo como instrumento de proteção integrada da terra ao mar. 

Ao longo do processo de discussão da nova lei, diferentes setores da sociedade têm desempenhado papéis cruciais para qualificar o debate. Universidades e redes ambientalistas têm produzido notas técnicas, artigos e estudos detalhando as inconsistências e os riscos da nova lei. O Ministério do Meio Ambiente tem propostas de alternativas equilibradas aos dispositivos da lei, visando promover modernizações que não eliminem salvaguardas ambientais. Organizações da sociedade civil mantêm campanhas permanentes de informação, chamando a atenção de parlamentares e da sociedade sobre os riscos da nova lei e defendendo a manutenção dos vetos presidenciais que retiraram do texto os artigos mais nocivos. 

Enquanto o Congresso não define a data para a apreciação dos vetos, a responsabilidade recai sobre nós: manter a vigilância e o engajamento público. Procure quem representa seu estado no Senado e na Câmara. Peça a preservação de todos os 63 vetos presidenciais, pois a derrubada de qualquer um deles representará um grave retrocesso socioambiental –com impactos diretos sobre o oceano e a imagem do Brasil perante o mundo. Fortalecer o debate com base em dados, evidências e argumentos técnicos é essencial. Desinformação é, hoje, uma das maiores aliadas de um texto que enfraquece a proteção ambiental.

O oceano não tem voz nas votações do Congresso, mas sente cada decisão tomada sem cautela. É ele quem devolve à costa os efeitos do descuido, em forma de erosão, águas poluídas e comunidades ameaçadas. Que a reforma do licenciamento não nos faça esquecer que tudo o que escorre da terra, um dia, chega ao mar. 

Para saber mais

Sánchez, L.E.; Fonseca, A. (2025). Polêmico e limitado: o projeto da Lei Geral do Licenciamento Ambiental. Parecer técnico preliminar sobre o PL 2.159/2021 (originalmente 3.729/2004). São Paulo e Ouro Preto. 

Nota Técnica do Observatório do Clima sobre os vetos à Lei Geral do Licenciamento Ambiental.

Por que o PL do licenciamento ameaça o oceano
Ecossistemas terrestres e marinhos estão interligados; intervenções sem a devida avaliação de impactos podem causar degradação cruzada

Autor

Ressoa Oceano
Ressoa Oceano

Somos uma rede colaborativa de comunicação sobre o oceano. Apostamos na ação conjunta de atores sociais diversos para mobilizar ações para conscientização e mudança de comportamento em relação à cobertura, percepção e visibilidade sobre o oceano.

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