Artigo: 'COP26: sustentabilidade em xeque', escreve Rafael Menezes
Artigo: ‘COP26: sustentabilidade em xeque’, escreve oceanógrafo Rafael Menezes
Mudança do padrão climático tem potencial de causar mais mortes do que qualquer pandemia que a humanidade já viveu
*Por Rafael Menezes (mais informações no rodapé)
Como praticamente todos os eventos do ano passado, as negociações climáticas internacionais também foram adiadas por causa da pandemia da covid-19. O edifício em Glasgow, capital da Escócia, que acolheria a reunião da COP26 (26a Conferência das Nações Unidas sobre Mudanças Climáticas) em 2020, teve de ser convertido num hospital de campanha para tratar pacientes com covid-19.
A pandemia é sem dúvida a ameaça mais urgente que a humanidade enfrenta no momento, mas a mudança climática é a maior ameaça que a humanidade enfrenta a longo prazo. As mudanças do padrão climático têm um potencial de causar, direta e indiretamente, mais óbitos que qualquer pandemia que a humanidade já viveu.
As negociações climáticas ocorreram, então, de 31 de outubro a 13 de novembro de 2021, num contexto quase emergencial para evitar que os cenários mais catastróficos da crise climática se concretizem. Em uma analogia cinematográfica, é como se estivéssemos em um filme de ação, dentro de um carro em fuga de alta velocidade, prestes a cruzar uma linha de trem, com o próprio trem também se aproximando numa velocidade ainda maior.
Estamos na cena em que o piloto desconfia que não importa a sua habilidade nem a potência do seu veículo, porque será impossível ultrapassar a linha antes da passagem do trem. Então, numa fração de segundos, precisa decidir: 1) se ignora o seu conhecimento, acelera e coloca em risco um choque muito provável; ou 2) se começa a frear e se prepara para enfrentar o que vem atrás e o obriga a acelerar nessa fuga. Nesta analogia, o trem é a mudança climática (e seria um trem de muitos vagões). E o perseguidor? Pode ser qualquer setor econômico, ou todos juntos, pressionando pelo crescimento do PIB independentemente de suas consequências.
‘Mudança climática’ é uma expressão quase redundante
Deixando a analogia de lado, o termo “mudança climática” é uma expressão quase redundante. Atenção: quase redundante. O clima não é estático, ele possui diversas oscilações em diversas escalas de tempo diferentes, desde centenas de milhares de anos até poucas décadas. Portanto, o clima muda naturalmente.
O clima não é o tempo. O tempo é um estado momentâneo, como ‘o tempo está ensolarado’ ou ‘a previsão do tempo para amanhã é chuvosa’. Já o clima é uma média dos parâmetros que indicam o estado do tempo, ao longo do tempo (este último no contexto de linha temporal). O clima em determinada região é semiárido por causa da média da pluviosidade, por exemplo.
Tá, mas então o que está acontecendo com o clima para usarmos a expressão “mudança climática”?
As séries de dados ambientais indicam uma mudança do padrão climático, e uma mudança em uma taxa mais acelerada do que a prevista com base nos registros geológicos das oscilações climáticas naturais. Os níveis de CO2 na atmosfera estão aumentando, a atmosfera está aquecendo, as geleiras estão derretendo, o pH dos oceanos está diminuindo e a temperatura dos oceanos está aumentando, inclusive de camadas mais profundas.
Os oceanos são os grandes responsáveis pela distribuição de calor e energia pelo planeta. Um oceano com mais calor e energia resulta em maior frequência de eventos oscilatórios, como El Niño e La Niña, e eventos extremos, como chuvas intensas, tempestades, furacões, ressacas, etc. Estas mudanças, entre outras, influenciam na qualidade de vida das populações, principalmente das mais vulneráveis, com menor capacidade de adaptação e de resiliência a essas mudanças e a esses eventos extremos.
A compreensão da complexidade climática é, sem dúvida, uma das principais fronteiras do conhecimento. Avanços nessa compreensão são extremamente importantes para a previsão e a adaptação à mudança climática. Inclusive, o prêmio Nobel de Física de 2021 foi dado a um grupo de 3 pesquisadores, incluindo um oceanógrafo, pelas contribuições inovadoras para a compreensão de sistemas físicos complexos.
O clima da Terra é um bom exemplo desse tipo de sistema físico complexo, e a contribuição de um dos premiados foi a descoberta de que a temperatura da superfície da Terra aumenta 2ºC quando a concentração de CO2 na atmosfera é dobrada. Outro premiado avançou na modelagem do clima e das “impressões digitais” das emissões de carbono de atividades humanas.
Termelétricas aumentam a estiagem, que aumenta o uso de termelétricas
Desde o início das negociações climáticas e em prol da sustentabilidade na Rio92, muitos documentos foram elaborados, mas poucas ações foram concretizadas. O Brasil, por exemplo, está atualmente inaugurando termelétricas para garantir o fornecimento de energia para a população, enquanto bate recordes de desmatamento e de estiagem.
Além do uso de termelétricas aumentar o custo da conta de luz da população, dificultando qualquer adaptação para desafios climáticos futuros, o uso extensivo de termelétricas aumenta também a emissão de gases, que é o principal causador da mudança climática, que por sua vez é relacionado com a intensificação da estiagem, que estimula o investimento em termelétrica. É um paradoxo.
Algumas das metas da COP26 foram, então:
- Assegurar net-zero (balanço neutro de emissão de carbono) até meados do século e manter ao alcance o aquecimento do planeta em 1,5 grau;
- Garantir a proteção de comunidades e habitats naturais;
- Mobilizar recursos financeiros; e
- Trabalhar em conjunto para entregar os recursos financeiros necessários para atingir outras metas.
De volta à analogia do trem
Voltando à analogia cinematográfica: às vezes, tudo que é preciso é uma conversa honesta e transparente entre o perseguido e o perseguidor, sem necessidade de qualquer enfrentamento, para planejar o período em que o trem irá bloquear o avanço na estrada. Ou seja, é necessário que os setores econômicos e as nações trabalhem juntos.
Então, a expectativa é de que a COP26 fosse uma negociação honesta e ambiciosa para melhorar a qualidade de vida de todas as populações durante. A hora de garantir a sustentabilidade já passou, e as negociações precisam reavaliar o equilíbrio do poder na governança climática para “correr atrás do prejuízo”.
A fusão desses desafios financeiros de adaptações climáticas com os desafios de recuperação econômica em função da pandemia, junto com os desafios da manutenção da qualidade ambiental para garantir a continuidade de recursos ecossistêmicos em escalas locais, colocam em xeque (mate?) a sustentabilidade do sistema produtivo da sociedade.
Afinal, os recursos naturais são as ‘galinhas dos ovos de ouro’ da ECOnomia.
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