Rumo a um novo e mais inclusivo Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro
A ideia central é de que as saídas para os impasses da modernidade não estão à frente, mas no reencontro com os saberes originários, patrimônio vivo das populações tradicionais
Por Luciana Yokoyama Xavier e Monique Torres de Queiroz (*mini bios ao final do texto)
Em sua 10ª quinta edição, o principal evento sobre gerenciamento costeiro do Brasil inovou de um jeito peculiar: buscou se fortalecer na tradição. O evento contou com representações de povos e comunidades tradicionais nos debates e, pela primeira vez, na composição da mesa de abertura do evento. A mensagem é clara: não se gerencia o litoral sem se reconhecer os direitos e conhecimentos daqueles que historicamente o ocupam.
O conceito de um “futuro ancestral”, propagado por lideranças como Ailton Krenak, vem repercutindo cada vez mais em discussões sobre sustentabilidade e se espraia para o oceano. A ideia central é que as saídas para os impasses da modernidade não estão à frente, mas no reencontro com os saberes originários, patrimônio vivo das populações tradicionais.
Enquanto governos se sucedem e políticas públicas vêm e vão, um grupo permanece há séculos como guardião do litoral brasileiro. São os povos e comunidades tradicionais (PCTs) que, com seu conhecimento local e vínculo territorial, fazem a gestão costeira integrada das áreas costeiras muito antes do termo existir na legislação.
O 1º Diagnóstico Brasileiro Marinho-Costeiro (DMC) estima que existem pelo menos 61 Terras Indígenas, 111 territórios quilombolas e diversas outras comunidades, como caiçaras, pescadores e pescadoras artesanais, extrativistas costeiros e marinhos cuja existência e cultura são fundamentais para a identidade do litoral brasileiro. Apesar disso, esses grupos e suas práticas foram, por anos, invisibilizados, negligenciados e deixados à margem nos processos de elaboração de políticas públicas.
Em um de seus principais achados, o capítulo escrito por representantes desses grupos no DMC destaca que “o cuidado com os ambientes marinhos-costeiros passa necessariamente pelo reconhecimento e valorização das formas sustentáveis de manejo tradicionais” e que “instrumentos de gestão elaborados em diálogo com os povos indígenas e comunidades tradicionais demonstram maior potencial para o cuidado compartilhado dos ambientes marinhos-costeiros.” Um recado que a presença de representações de povos e comunidades tradicionais no XV Encontro Nacional de Gerenciamento Costeiro (XV Encogerco) reforça.

Do lugar de fala ao lugar de decisão
Na solenidade de abertura do evento, Ana Flávia Pinto, pescadora artesanal, caiçara de São Paulo e membra do Fórum de Comunidades Tradicionais de Angra-Paraty-Ubatuba deixou claro que a presença no evento não pode ser apenas simbólica: “Temos vivido nos territórios os impactos de um plano que, embora importante, na maioria das vezes foi implementado de cima para baixo, sem diálogo real com as comunidades. E isso não pode mais acontecer:
“NADA SOBRE NÓS SEM NÓS!”
Em sua fala, Ana Flávia apresentou reivindicações concretas para a revisão do PNGC. A principal demanda é a inclusão obrigatória dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) em todos os níveis de atuação do plano, desde a esfera federal até a municipal, assegurando sua participação efetiva e incorporando as práticas tradicionais em instrumentos de planejamento e gestão. Além disso, reivindicou o reconhecimento dos territórios tradicionais como áreas prioritárias para o gerenciamento costeiro, com medidas que garantam o acesso, o uso e a proteção desses espaços fundamentais para a identidade e a sobrevivência dessas populações. A pescadora também enfatizou a importância da participação, transparência e controle social nos comitês gestores e conselhos e a integração do PNGC com outras políticas públicas essenciais, como as de soberania alimentar, saúde e educação, promovendo uma abordagem mais holística e intersetorial para o desenvolvimento costeiro.
O grito “A nossa luta é todo dia, o território não é mercadoria”, que fechou a fala de Ana, ressoou por diversos momentos ao longo do evento.
Uma trajetória de quase 4 décadas
Os Encogerco começaram em 1988 como fóruns técnicos para discutir a implantação do gerenciamento costeiro no Brasil e se consolidaram como o espaço onde se debatem e moldam as políticas públicas para a zona costeira brasileira. Foi dos debates do Encogerco que nasceram importantes instrumentos como o II Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, em vigor desde 1997, e o Projeto Orla. Ao longo dos anos, o caráter técnico evoluiu para dar espaço à articulação e participação de entidades de pesquisa, organizações não governamentais, iniciativa privada e, com força crescente, povos e comunidades tradicionais.
O XV Encogerco, realizado em Fortaleza, entre os dias 29 de setembro e 02 de outubro, contou com cerca de 800 pessoas e debateu a construção coletiva do novo Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro (PNGC III), as discussões foram canalizadas em quatro eixos centrais: Vulnerabilidade Costeira e Adaptação às Mudanças do Clima; Ordenamento Territorial Integrado; Conservação e Recuperação de Ecossistemas Costeiros; e Participação Social na Gestão Costeira.
Após 3 dias de intensos debates em grupos temáticos, as propostas apresentadas na plenária final apontaram um caminho claro e urgente para a costa brasileira. Um dos pontos mais fortes foi a necessidade de uma governança costeira verdadeiramente inclusiva e paritária, na qual os PCTs atuem como protagonistas na elaboração das políticas, e não meramente como consultados. Reverberando as reivindicações da mesa de abertura, as propostas salientaram que a própria resiliência costeira está intrinsecamente ligada ao fortalecimento dessas comunidades, passando pela regularização fundiária e pelo combate ao racismo ambiental.
Paralelamente, as discussões destacaram a importância de priorizar soluções baseadas na natureza e no oceano como estratégia central para a adaptação climática e a proteção do território. Isso inclui a expansão e a efetiva implementação de Áreas Marinhas Protegidas, a restauração e proteção de ecossistemas críticos, como dunas e manguezais, barreiras naturais contra a erosão e a elevação do nível do mar. As propostas também preveem a substituição progressiva de obras duras, como quebra-mares de concreto, por infraestrutura natural e a criação de fundos específicos para financiar essas ações de adaptação.
As propostas foram recebidas com um sentimento geral de esperança e expectativa, marcado pela sensação histórica de que, finalmente, as vozes dos povos do mar estavam sendo registradas. No entanto, havia a clara consciência coletiva de que o registro no evento não garante a incorporação no PNGC III. Esse entendimento motivou exigências de documentação minuciosa do debate para as propostas poderem ser incorporadas na redação do plano e não se limitarem ao evento.
Assim, o XV Encogerco é um teste para a capacidade do país de construir uma política costeira que seja mais justa e inclusiva. As propostas discutidas no evento serão sistematizadas em um relatório que será encaminhado para o Grupo de Integração do Gerco (Gi-Gerco), responsável por receber, articular e encaminhar as propostas para o PNGC III, cuja versão final está prevista para 2026. O sucesso do novo plano nacional dependerá, em grande parte, de como as vozes que colaboraram com esse início da construção do plano serão traduzidas em ações concretas.
Luciana Yokoyama Xavier é doutora em oceanografia, pesquisadora da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano, membra da Liga das Mulheres pelo Oceano e bolsista Mídia Ciência (FAPESP 2025/06447-4) da Rede Ressoa, uma rede colaborativa de comunicação sobre o oceano.
Monique Torres de Queiroz é mestre em oceanografia, doutoranda do IO-USP (Instituto Oceanográfico da Universidade de São Paulo), pesquisadora da Cátedra UNESCO para a Sustentabilidade do Oceano e comunicadora da Rede Ressoa.
Autor
Somos uma rede colaborativa de comunicação sobre o oceano. Apostamos na ação conjunta de atores sociais diversos para mobilizar ações para conscientização e mudança de comportamento em relação à cobertura, percepção e visibilidade sobre o oceano.
Inscreva-se nas newsletters do Correio Sabiá.
Mantenha-se atualizado com nossa coleção selecionada das principais matérias.