Mães de pessoas com deficiência lutam por acesso a direitos e fortalecimento da saúde mental

Batalhas reforçam a importância de políticas públicas que garantam recursos para promover o bem-estar emocional de toda a família

Mães de pessoas com deficiência lutam por acesso a direitos e fortalecimento da saúde mental
💙 Claudemeire Coutinho, pedagoga, com a filha Valentina / Imagem: Vitória Santos
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A maternidade traz vários desafios para quem decidiu ser mãe ou simplesmente chegou a essa realidade. Mas quando se trata das mães atípicas –como são conhecidas as mães de pessoas com deficiências –a caminhada é ainda mais complexa: desde o diagnóstico até a rotina de cuidados, os dias são longos e as noites nem sempre são feitas para dormir.

Em alusão ao Setembro Verde, mês da pessoa com deficiência, esta reportagem conta as histórias de mães que, mesmo vivendo realidades diferentes, lutam pela concretização de um desejo comum: que seus filhos recebam sempre o melhor que a vida tem a oferecer.

  • O material foi produzido no âmbito da disciplina "Apuração Jornalística", ministrada no 2º semestre do curso de Jornalismo da UnB (Universidade de Brasília) sob a supervisão da Prof. Fernanda Vasques Ferreira.

Relatos da complexidade do diagnóstico na maternidade atípica

Quando Claudemeire Coutinho descobriu que estava grávida de sua 2ª filha, há 11 anos, receber um diagnóstico de síndrome de Down não estava nos planos. A condição, que se deve à presença de um cromossomo 21 extra em todas as células do corpo, pode ser detectada na gestação, mas só se mostrou presente no nascimento de Valentina.

Claudemeire, que atua como pedagoga no Ensino Especial há 17 anos, conta que a notícia do diagnóstico foi um momento desafiador para todos da família, apesar da sua experiência na educação:

“Naquele momento, não tinha nada da profissional. Quando eu sofria, chorava com meu esposo, tinha apenas uma mãe que tentava entender como seria sua vida a partir dali.”

A pedagoga também comenta que a compreensão da maternidade enquanto um fenômeno real é importante para que a família entenda o que é cuidar de uma criança com deficiência desde os momentos iniciais.

“Eu tive que enterrar o meu filho ideal, que eu estava gerando, e dar à luz a minha filha real. Só assim consegui cuidar de mim e dela; se a mãe de uma criança especial fica presa no que é ideal, ela vai sofrer o tempo todo e a criança também. Ela tem que entender que nasceu alguém que exige um acompanhamento, um outro olhar”, pontua.

Há, também, diagnósticos que são oficializados ainda mais tarde na infância, como é o caso de Cauã, de 10 anos, filho de Adeliana Caixeta. A assistente administrativa conta que o autismo nível 1 de suporte do filho foi descoberto aos 2 anos e meio, mas o laudo saiu só 4 anos depois. A posse do documento permitiu, enfim, que Adeliana mudasse sua dinâmica de trabalho e pudesse acompanhar a rotina do filho com mais qualidade:

“Me autorizaram a colocar todo o suporte no celular, ou seja, estou lá nas terapias, mas estou assinando um documento, trabalhando. Isso melhorou muito a minha vida”.

Os processos de diagnóstico para algumas deficiências, como o TEA (Transtorno do Espectro Autista) e a síndrome de Down, são multidisciplinares e dispendiosos. Fatores financeiros e sociais podem dificultar o acesso ao laudo e, para Kátia Guimarães, psicóloga e mãe de uma adolescente com diagnósticos de TEA nível 1 e Altas Habilidades, esse contexto pode favorecer o surgimento de comorbidades duradouras, como quadros de ansiedade e depressão decorrentes da sensação de não pertencimento.

Importância da luta por direitos básicos para pessoas com deficiência

Em 2015, foi sancionada a Lei Brasileira de Inclusão, também conhecida como Estatuto da Pessoa com Deficiência. Em suas disposições gerais, o texto considera primordial o acesso à educação e à saúde. A realidade de várias mães de crianças atípicas, no entanto, é bem diferente do que consta nos documentos.

Mãe de duas filhas, Andrea Medrado conta que entre embates com planos de saúde e olhares de estranheza no convívio social, as lutas pela inclusão de sua caçula, Maria Flor, são constantes –além de ter a síndrome Pitt-Hopkins, uma rara desordem genética do neurodesenvolvimento, a menina também está no nível 3 de suporte do espectro autista.

“A gente tem que lutar por acesso à educação, saúde, lazer, transporte, acessibilidade. Cada dia é uma luta diferente. E é como se tivesse uma carga, sabe? Não porque a minha filha é uma pessoa com deficiência, mas porque negam todos os direitos dela. A sociedade tem muito que mudar, rever”, desabafa.

Ao comentar sobre um acidente doméstico com seu filho, Adeliana também mostra as falhas no atendimento a pessoas com deficiência no campo da saúde.

“Fomos à emergência e eu avisei que se tratava de uma criança autista em crise, gritando, e foram 3 homens para segurar uma criança de 10 anos. Quando o cuidador não sai da vertente protocolar, dando um calmante, um sedativo, é muito difícil pra nós. Não é na brutalidade que a gente tem que fazer, é no acolhimento”, relembra.

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Alessandra e sua rede de apoio / Imagem: Acervo pessoal

Como uma rede de apoio pode transformar a vida de famílias atípicas

A jornada de Alessandra de Carvalho na maternidade começou cheia de desafios: Alice, sua 1ª filha, nasceu com 24 semanas de gestação, em um quadro de prematuridade extrema. Aos 2 anos teve diagnóstico de paralisia cerebral grau 1, apontada por um exame de imagem, que resultou em um comprometimento motor. 

A servidora pública destaca, no entanto, a importância fundamental que o estímulo correto e uma rede de apoio consolidada têm no desenvolvimento exemplar de Alice, hoje com 6 anos:

“Desde o dia que saímos da UTI, minha filha teve atendimentos de fisioterapia ocupacional, motora e respiratória. Minha rede de apoio me permitiu trabalhar, e Alice nunca deixou de ir às terapias porque sempre teve quem a levasse”.

Alessandra conta, ainda, que parentes próximos “rodaram a cidade” em busca de peças de roupa inusitadas para a estada no hospital: meias de pet, destinadas ao uso de cachorros pequenos e que substituíram os arranjos feitos com gaze nas mãos e pés da menina, já que tamanhos infantis convencionais não serviam.

“Eu sei que o diferencial da Alice nasce aí, porque ela teve naturalmente essa rede de apoio muito forte, muito unida, que é a identidade da minha família”, avalia.

Como as questões de saúde mental afetam mães de filhos com deficiência

Essa, no entanto, não é a realidade de todas as mães atípicas. A rede de apoio –um núcleo próximo à família essencial ao bem-estar da criança e, sobretudo, de seus cuidadores– pode não estar presente por uma série de fatores, e a ausência dessa rede pode trazer dificuldades e enfrentamentos para as mães.

Os índices de transtornos de saúde mental entre mães atípicas são elevados: um estudo publicado pela Universidade da Califórnia em 2022 mostra que 50% das mães de crianças com neuro divergências apresentam sintomas depressivos, intensificados por expectativas sociais e pressões psicológicas. Eis a pesquisa completa.

Vanessa Senatori, psicóloga especializada no atendimento a mães de crianças com deficiência, esclarece que há 3 fatores principais que elevam o grau de esgotamento mental de mães atípicas: o estresse, o isolamento e a autocobrança.

O estresse e ansiedade resultam dos cuidados extras que essas mães desempenham; o isolamento social vem do medo de que a criança seja rejeitada em determinados ambientes, o que faz com que as saídas sejam evitadas, e a autocobrança parte do senso de perfeccionismo elevado.

“Por vezes, o avanço é dar 1 passo para a frente e 10 para trás. O sentimento de inadequação faz com que elas [as mães] não queiram continuar, mesmo diante da necessidade de estarem presentes”. 

Com isso, Kátia Guimarães também destaca que, no caso de crianças com deficiência, o suporte de pessoas próximas se faz ainda mais necessário.

“A rede de apoio é vital para qualquer mãe e, para a mãe atípica, essa importância aumenta, porque você tem um bebê, uma criança, um adolescente que demanda mais. É algo que a gente teria que ter como política pública, para que as pessoas entendessem que, para criar uma criança, é preciso uma tribo”, sentencia.

Desafios na educação: entenda os fatores que levam à inclusão nas escolas

Graças às lutas que seguem sendo travadas pelo movimento das pessoas com deficiência há mais de 40 anos, hoje cabe ao poder público o dever de assegurar o acesso, permanência e participação de alunos com deficiências físicas e intelectuais nos sistemas educacionais.

O desafio, no entanto, está em fazer valer essa regra no dia a dia: enquanto corre o debate na esfera legislativa sobre a relevância do Ensino Especial –no qual 1,7 milhão de crianças estavam matriculadas até 2023, segundo dados do Inep (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira)–, a batalha para garantir adaptações necessárias ao desenvolvimento de crianças atípicas no ambiente escolar se estende no ensino regular.

Experiências vividas por Andrea indicam que o sistema não tem a preparação necessária para acomodar necessidades educacionais específicas: Maria Flor se utiliza de recursos de acessibilidade comunicacional –providenciados pela família, por aplicativos instalados em um iPad –e precisa de monitores para acompanhamento individualizado, e a família já chegou a ter matrícula negada em algumas escolas.

Questões sobre a acessibilidade curricular são, também, presentes nas vidas de Adeliana e Cauã, que passaram por um percurso sofrido até compreender que estratégias diferenciadas seriam necessárias para a alfabetização do menino.

“Meu filho é muito capaz, mas nem sempre a forma de ensino que o Brasil tem é adequada pra ele, porque nosso alfabeto é fonético e Cauã é muito visual, então contratamos uma alfabetizadora e o processo foi feito por imagens. Tratar do atípico é estar aberto a muitas variáveis”, esclarece.

Para Alessandra e Alice, está clara a importância do acompanhamento familiar, quando possível:

“A dificuldade dela é só motora, então contamos com uma psicopedagoga que a ajuda a escrever, apesar de ela treinar a questão motora na terapia ocupacional. Na escola ela é autônoma, mas enquanto de uma outra criança esperam rendimento total, dela esperam 70, 50%”.

A família montou, em casa, um ambiente para que o desenvolvimento de Alice pudesse ser observado de maneira lúdica, apelidado de ‘escola de fadas’:

“Eu não quero ficar em cima, então finjo que estou fazendo o que é meu, mas estou ali sentada e observando como ela está, se está pegando bem o lápis…Aí consigo fazer a intervenção na hora que é preciso”, detalha Alessandra.

Claudemeire comenta que, na perspectiva escolar, os conceitos de integração e inclusão são muito diferentes:

“A sala pode até ter uma cadeira para aquela criança com necessidades específicas, mas o professor adequa o currículo a essa criança e permite a participação, do jeito dela, na dinâmica da sala? Se um professor está valorizando o que ela traz e fazendo com que sua voz seja ouvida, há uma inclusão, porque aquela criança está caminhando com os demais.”

Vida profissional de mães de pessoas com deficiência

As mudanças trazidas pela maternidade atípica se refletem em todos os campos da vida privada, e uma das áreas mais impactadas é a profissional. Enquanto há mães que desafiam as adversidades do sistema ao lutarem pela adequação de suas funções, há aquelas que também aproveitaram a ocasião para mudar o rumo profissional.

Adeliana, que hoje trabalha em regime home office para uma empresa privada e é também estudante de Psicologia, avalia que seu ambiente de trabalho é compreensivo, mas não inclusivo.

“Eu vejo muito como uma troca de interesses, porque a partir do momento que posso mandar e-mails à noite, por exemplo, também recebo mensagens meia-noite, de madrugada… Acho que são compreensivos, mas vejo que não fazem mais que o mínimo, até porque se eu não produzisse, estaria fora há muito tempo”, reflete a assistente administrativa. 

Já para casos do serviço público, a Lei 13.370/2016 prevê que servidores federais têm direito a horários especiais de trabalho. Contemplada por essa norma, Alessandra também optou pela retomada dos estudos e ingressou, neste ano, no curso de Terapia Ocupacional na UnB (Universidade de Brasília).

“Eu não poderia escolher outro curso porque a terapia ocupacional está na minha vida desde que Alice nasceu. Fazendo esse curso eu ajudo a minha filha e me ajudo, porque entro no mundo novo que eu quero sem sair do mundo dos meus filhos”, finaliza.


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