'Sábios Diálogos': Doutor em Oceanografia pela USP explica branqueamento de corais

Criador/CEO do Correio Sabiá, Maurício Ferro entrevistou o Doutor em Oceanografia pela USP (Universidade de São Paulo) Miguel Mies no dia 2 de maio de 2024. O assunto: branqueamento de corais.

• Miguel Mies é Doutor em Oceanografia pela USP, responsável pelo Laboratório de Recifes de Corais e Mudanças Climáticas (LARC); Coordenador de Pesquisas do Projeto Coral Vivo; e membro do Conselho Diretor do Instituto Coral Vivo. Eis o currículo Lattes.

A troca fez parte da série "Sábios Diálogos", as conversas de alto nível do Correio Sabiá para fortalecer a sua comunidade, ampliando o debate público sobre assuntos essenciais para nossa vida e planeta. (*Mais informações sobre a série Sábios Diálogos estão abaixo, num intertítulo deste conteúdo).

Eis a íntegra da entrevista no canal do YouTube do Correio Sabiá (siga por lá e deixe seu 👍🏻):

Abaixo, parte da transcrição da entrevista (*esta reportagem está sendo atualizada):

Maurício Ferro (Correio Sabiá): O que é o branqueamento de corais e por que isso é realmente um problema?

Miguel Mies: O coral é um animal e, dentro das suas células, o coral tem uma microalga. Essa microalga a gente chama de zooxantelas. É uma relação simbiótica, uma parceria. Os 2 ganham com essa relação. A zooxantela ganha o obrigo do coral e, como é um ser fotossintético, ela ganha CO2 –o coral respira, assim como nós, animais, ele respeita oxigênio (O2) e libera CO2, e o CO2 a zooxantela usa para fazer fotossíntese– e o coral ganha energia, porque a zooxantela ao fazer fotossíntese ela produz carbono em excesso. Esse excesso de carbono ela doa ao coral. Então ela alimenta o coral e ela pode doar até 100% da necessidade de carbono do coral. Então, é um tremendo bom negócio para os 2.

Agora, por que o branqueamento é um problema nessa relação? Porque quando está quente, as zooxantelas (quando elas estão passando por estresse térmico, no calor) começam a produzir substâncias que a gente chama de espécies reativas de oxigênio. São substâncias tóxicas para o coral. Então, o parceiro do coral começa a ficar venenoso para o coral. A resposta adaptativa do coral é mandar embora a zooxantela, então ele expulsa a zooxantela. E aí o que acontece é que a perda da zooxantela, que dá um tom amarronzado para o coral com a degradação dos pigmentos que dão a cor (o amarelo, o azulado, o que quer que seja do coral) é degradado pela espécie ativa de oxigênio. Então, o tecido do coral fica transparente, e aí o esqueleto branco dele, caucário, fica visível por debaixo dessa camada de tecido transparente.

Seria algo como se nós, seres humanos, de repente ficássemos com a pele e órgãos transparentes. Então, o coral branqueado está na UTI, mas está vivo ainda. O problema é que o branqueamento gera muita mortalidade, porque, sem as zooxantelas, o coral fica com um déficit energético muito grande. Falta comida, falta carbono para ele. Então, muitos corais morrem se o branqueamento for mais intenso. Esse é o fenômeno do branqueamento, essas são suas causas e suas consequências.

MF: Falando em consequências, quais são as consequências para nós, humanos? Por que devemos nos preocupar tanto com a saúde dos corais?

MM: Antes de explicar a consequência para nós, seres humanos, preciso explicar as consequências biológicas para daí a gente entender as consequências socioeconômicas.

Os recifes de corais são ambientes construídos por esses corais. Através do seu esqueleto caucário, conforme esses corais vão crescendo, esses corais têm diferentes morfologias e tudo mais, eles vão construindo um ambiente que é todo recortado, tridimensional. Então ele é cheio de fendas, buracos onde chega mais luz, chega menos luz, onde a hidrodinâmica é maior... Tudo isso favorece a especiação e biodiversidade, porque esse ambiente tão complexo topograficamente falando serve de sítio de abrigo, de alimentação e de reprodução para milhões de espécies.

Então, a biodiversidade nos recifes de corais é gigantesca. A gente tem 25% da vida marinha encontrada em recifes, sendo que os recifes ocupam mais ou menos 0,1% da superfície do oceano. Então é muita vida numa área relativamente pequena. Então, a importância da biodiversidade é muito grande.

Se você tem muita biodiversidade muito grande, você vai ter consequências socioeconômicas também. Por exemplo: se tem muita biodiversidade, tem muito pescado. E a gente sabe hoje que o recife é comida. Mais ou menos 10% de toda a proteína animal consumida no planeta vem de recife de coral. Então, se a gente perde o recife, a gente perde comida. Pescadores e outras pessoas que dependem do recife para sobreviver vão sofrer.

Além disso, o recife também produz turismo, porque ele tem essa beleza natural você começa a desenvolver todo um polo de turismo. Como assim? Você começa a ter operadoras de mergulho que vão levar pessoas para mergulhar, aí começa a desenvolver por conta disso restaurantes, pousadas e todo um centro econômico.

Mas não é só pesca e turismo. Tem também a questão biotecnológica. Tem muitos compostos que são extraídos e depois biossintetizados que têm valor farmacêutico e são extraídos de organismos recifais. Uma pesquisadora da nossa rede de pesquisa Coral Vivo descreveu uma substância com enorme potencial antibiótico de uma espécie de coral brasileiro.

Tem também a proteção costeira que é importante dos recifes de corais, porque, como também o recife é uma barreira submersa, quando um evento climático se aproxima da costa (um evento climático sempre tem sua componente atmosférica e sua componente marinha), quando a componente marinha encontra uma barreira, a energia é atenuada, então essa energia não chega tão intensamente até a costa e protege a costa da erosão.

Então, se a gente soma todos esses serviços ecossistêmicos –pesca, turismo, valor biotecnológico, proteção costeira– os recifes de corais são fundamentais, e eles beneficiam diretamente 500 milhões de pessoas ao redor do planeta e geram uma renda anual de US$ 10 trilhões. Ou seja, ele é muito importante, mas só vivo. Tudo isso só funciona se ele tiver vivo.

Como os eventos de branqueamento de carol ocorrem?

A gente pode classificar os eventos de branqueamento de coral de duas maneiras: local e global. Os eventos globais atingem obrigatoriamente os 3 oceanos, Atlântico, Índico e Pacífico, e numa escala de tempo relativamente curta. Estou falando de 1 ano ou alguns poucos anos. Os eventos locais são aqueles explosivos ou específicos de alguma região que aconteceu.

(...)

Quais as soluções para proteger os recifes de corais?

O que acontece: a gente esquentou muito o planeta e, mesmo que a gente conseguisse parar de poluir a atmosfera e esquentar o planeta agora, o planeta ainda tem muito calor acumulado e vai continuar esquentando por alguns anos. E a gente sabe que o tempo está bastante contra a gente. A gente tem cerca de 25 anos para reverter isso aí. Por quê? Porque já existem modelagens bastante precisas que mostram que, se continuarmos esquentando o planeta na taxa que estamos esquentando, a gente vai ter só 5% dos recifes de corais que tínhamos no começo da década de 1990. Então, vai praticamente aniquilar os recifes de corais em escala global. É uma corrida contra o tempo.

Quais são as possíveis soluções para isso daí? A primeira solução –eu vou falar 1º o que eu acredito, o que eu apoio, e depois as alternativas: a gente precisa começar a batalhar por um planeta mais limpo. E isso daí, como estamos falando de problemas de escala global, a gente precisa que o mundo inteiro faça sua lição de casa e se una a esse esforço. Como são eventos de escala global, não adianta a gente fazer a nossa parte no Brasil, mas os outros países não. Todo mundo tem que se unir e isso passa por um esforço muito grande de educação ambiental, de conscientização e sensibilização para a gente possa formar uma população que tenha crítica para que possa cobrar de políticos, tomadores de decisão, atitudes mais responsáveis e limpas perante o meio ambiente. Eu acredito muito que esse é o caminho, só que esse é um caminho lento.

Outra coisa que a gente pode e deve fazer, creio eu, é apoiar unidades de conservação existentes e unidades de conservação novas. Porque UC deixa o ambiente mais robusto, mais resistente, para enfrentar ondas de calor. Ambientes protegidos vão tolerar melhor do que os ambientes que sofrem com uma série de outros impactos, como poluição, sobrepesca ou turismo sem gerenciamento.

Então, esses são os 2 caminhos que eu batalharia por hoje. Criação e melhoria das unidades de conservação e educação ambiental e conscientização para a gente ter massa crítica global para combater esse problema.

Agora, existem outras iniciativas, como restauração de recife de coral, repovoamento e uma série de outras técnicas razoavelmente similares ou associadas a isso. Só que essas são técnicas que ainda não se mostram efetivas em nada. Não houve até agora um único programa de restauração com sucesso. Se não for bem feito pode até contribuir para impactos. Atrapalhar, e não ajudar o recife. É um negócio que ainda não tem escala... Então só coisas complicadas ainda. É uma solução muito simples para um problema muito complexo.

A gente sempre tem que continuar investindo nessas diferentes possíveis soluções, mesmo que elas não funcionem ainda, investir nelas é relevante porque a gente pode uma hora compreender uma coisa que, aí sim, pode ter uma eficácia maior no ambiente. Mas é um cenário difícil. Temos que ter algum otimismo, sem dúvida, mas a posição pessimista de muitos é porque é uma batalha difícil. Mas não é porque é difícil que nós temos que jogar a toalha.

Política pública é uma coisa muito importante. No Projeto Coral Vivo, quando ele foi fundado há quase 21 anos, as duas pessoas que fundaram, que são pesquisadores, foram visionários, creio eu, porque pensaram que a gente não ia conseguir batalhar contra a destruição desses ambientes só com pesquisa. A pesquisa é muito importante, ela gera o conhecimento, mas ela sozinha não chega lá. A gente precisa ter educação ambiental e a gente precisa ter políticas públicas. Por isso o Coral Vivo atua em 5 frentes. (...)

Mas a atuação do Coral Vivo perante política pública é muito similar ao que te falei, que é o que o grosso da comunidade científica tem feito. É "vamos batalhar por unidades de conservação mais efetivas, precisamos conservar melhor o planeta, para deixar os recifes mais resistentes para enfrentar as ondas de calor e os impactos globais. E a gente precisa batalhar em transformar a educação ambiental como política pública para a gente conscientizar as pessoas de que a gente precisa ter hábitos e práticas mais responsáveis e limpos no planeta para evitar que continue esquentando. É o máximo que se dá para fazer. Política pública para, por exemplo, este episódio de branqueamento que tem agora, a única coisa que se pode fazer é monitorar, documentar e comunicar para as pessoas, para diferentes setores da sociedade. Porque parar esse episódio não dá mais. O calor já está aí e a gente não consegue ligar um grande ar-condicionado e neutralizar esse calor.

A gente tem que olhar em investimentos para inovações tecnológicas que possam trabalhar junto ou até separadas da restauração que possam deixar esses métodos mais eficientes. Mas eu sugiro tudo isso em laboratório antes e não sair fazendo experimentação ainda sem conhecer o problema e a dimensão dele na natureza. (...)

As UCs no Brasil realmente funcionam? Quais os problemas das UCs e como podemos melhorar?

Um problema que o Brasil tem e que dificulta muito a eficiência e a atuação dos gestores associados às UCs é a falta de recurso e investimento dessas unidades. Elas não têm esforço humano suficiente para fiscalizar adequadamente. Sempre tem uma série de coisas erradas, ilegais e proibidas acontecendo em várias UCs porque os órgãos ambientais não têm o recurso adequado para fiscalizar e combater isso.

Ainda assim, a gente sabe que tem UCs que claramente tiveram impacto positivo na conservação dos ambientes. Principalmente naquelas um pouco mais distantes da costa. Vou citar 2 exemplos: Abrolhos e Atol das Rocas. Esses 2 lugares, que não são exatamente próximos da costa, 1º ficaram protegidos da urbanização. Isso é uma coisa boa, então estão menos sujeitos à poluição e tudo mais. Mas, criaçnaode UCs ajudaram a combater a pesca.

A pesca é uma coisa boa desde que seja regulamentada e que, em certas regiões, ela seja restrita, proibida, porque são regiões muitos sensíveis à pesca. Então a pesca é uma coisa boa, desde que seja feita de forma responsável. Veja: Abrolhos a pesca é proibida, Atol das Rocas a pesca é proibida... Esses são lugares em que os estoques de peixe estão razoavelmente bem conservados.

Noronha tem pesca, mas ainda assim é muito pouco e é controlada comparada com o resto da costa. Então, sim, criar UCs é importante, funciona, é muito bem conhecido que a diversidade de peixes invertebrados e a saúde desses organismos dentro de UCs é maior dentro do que fora dela.

UC é muito importante. O que a gente precisa é dar força para as unidades que já existem, dar mais recurso para elas, e criar novas unidades em regiões estratégicas que não estão protegidas e precisam ser. Sem dúvida, essa é uma prioridade que todo governo brasileiro, em todas as esferas –estadual, federal, municipal– tem que ter na cabeça.

*Recomendamos que você assista ao vídeo completo em nosso canal do YouTube para se aprofundar no assunto. Aproveite e deixe seu 👍🏻.

O que é a série 'Sábios Diálogos'?

O Correio Sabiá criou uma série de entrevistas com as maiores autoridades do país em diversos campos de conhecimento. Cada programa, um entrevistado diferente, sobre um tema da maior relevância para nossas vidas e nosso planeta.

O formato: webinários com especialistas, em que membros da nossa Comunidade podem participar. Fazemos a entrevista e, simultaneamente, essas pessoas podem enviar perguntas pelo chat, ao vivo. Se considerarmos necessário, liberamos que a pergunta seja feita pelo microfone.

Inicialmente, a série é destinada aos apoiadores do Correio Sabiá, que são os integrantes prioritários da Comunidade. Você pode apoiar este trabalho que fazemos por aqui, com um valor inferior a um cafezinho. ☕️

No entanto, no momento de publicação deste conteúdo, estamos liberando a participação de todas as pessoas interessadas nos webinários, como forma de tornar o conhecimento imediatamente acessível a todos.

Em resumo: "Sábios Diálogos" é a série que promove conversas de alto nível para que a sociedade civil possa ficar verdadeiramente bem-informada, tomando decisões melhores, baseadas em fatos, dados e evidências.