Enem: as suspeitas de ingerência política e os impasses no Inep
Entenda as suspeitas de ingerência política no Enem e os impasses no Inep
Duas semanas antes da prova, 37 servidores do Inep pediram demissão. Exame teve o menor número de inscritos neste ano
Por Beatriz Britto e Wendal Carmo
Maior porta de acesso ao ensino superior no Brasil, o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio) teve sua 1ª prova –de linguagens e ciências humanas– no último domingo (21.nov.2021), sob suspeitas de que teria ocorrido ingerência política na elaboração da avaliação.
No entanto, diversas autoridades em Educação avaliaram que o teste foi acima das expectativas, tanto em relação ao conteúdo das questões quanto à logística, que não teve relatos de problemas.
O tema da redação foi “Invisibilidade e registro civil: garantia de acesso à cidadania no Brasil”, e a presidente do CNE (Conselho Nacional de Educação), Maria Helena de Castro, disse em entrevista à CNN Brasil que o teste foi “[positivamente] surpreendente” e “muito tranquilo”.
Entenda abaixo os principais motivos para a suspeita de ingerência política na avaliação, relembre problemas em edições anteriores e saiba como é elaborada a prova.
Demissão em massa de servidores do Inep
A menos de 2 semanas (08.nov) da 1ª prova do Enem, 37 servidores do Inep pediram demissão, com críticas à gestão do atual presidente do órgão, Danilo Dupas. A debandada está relacionada às acusações de má gestão e “fragilidade técnica” no planejamento do Enem.
Os servidores disseram haver um “clima de insegurança e medo” instalado logo quando Dupas assumiu a presidência do instituto, em março. No pedido de demissão, os funcionários declararam que o pedido de demissão coletiva “não se trata de posição ideológica”.
Censura, assédio moral, tentativas de interferência no conteúdo do Enem, desmonte das diretorias e despreparo técnico para tomada de decisões estão entre as denúncias relatadas pelos servidores em entrevista ao Fantástico, programa da TV Globo.
De acordo com os relatos desses servidores, a Etir (Equipe de Tratamento para Incidentes), responsável por lidar com eventuais imprevistos no dia da prova, não foi acionada para participar da elaboração da organização do exame.
A Etir desempenha papel importante na logística da aplicação do Enem. Se faltar energia elétrica em algum local de prova, por exemplo, é ela que planeja a solução.
Ainda segundo os funcionários, uma espécie de censura no conteúdo da prova deu início às divergências. Questões sobre os contextos sociopolítico e socioeconômico do Brasil foram retiradas da minuta da prova a pedido do diretor de Avaliação da Educação Básica, Anderson Oliveira.
Com a exclusão dos itens, a prova teve seu nível de dificuldade alterado e, por isso, a nota também seria diminuída. Os servidores, então, construíram uma nova versão do teste para reequilibrar o nível de dificuldade. Nesta nova versão, aplicada no domingo (21), alguns dos itens excluídos foram novamente incluídos.
Enem começa a ter ‘a cara do governo’, diz Bolsonaro
Depois dos pedidos de demissão em massa e das acusações de ingerência política na elaboração do Enem, o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) disse no último dia 15 que a prova “começa a ter a cara do governo”.
“Ninguém precisa ficar preocupado. Aquelas questões absurdas do passado, que caíam tema de redação que não tinha nada a ver com nada. Realmente, algo voltado para o aprendizado”, disse Bolsonaro a jornalistas na Expo 2020, em Dubai.
A atual gestão do Inep é a 5ª desde o início do governo Bolsonaro, e o Enem é alvo de críticas da ala ideológica por, tradicionalmente, ter questões que trazem debates sobre pautas sociais, como gênero, LGBTQIA+, feminismo, direitos humanos e racismo, por exemplo.
Não houve nenhuma questão na prova sobre a ditadura militar (1964-1985) desde o 1º ano de governo (2019). Na última edição do Enem, Bolsonaro criticou um item em que os salários dos jogadores Neymar e Marta eram comparados. Segundo ele, havia “clara ideologia”.
Além disso, Bolsonaro teria pedido ao ministro Milton Ribeiro (Educação), no 1º semestre deste ano, para que o termo “golpe militar” nas avaliações fosse trocado por “revolução”, de acordo com reportagem da Folha de S.Paulo publicada no último dia 19.
Ministro da Educação e presidente do Inep dão explicações à Câmara
As acusações de ingerência política na elaboração do Enem fizeram o ministro da Educação e o presidente do Inep irem à Câmara dar explicações sobre a exoneração em massa e sobre a avaliação.
Dupas declarou que os desligamentos não prejudicariam a realização do exame. Ele também negou que tenha ocorrido interferência no teste. Afirmou ainda que estava “abrindo diálogo” com a Assinep (Associação de Servidores do Inep) para tratar das denúncias de assédio moral.
Já o ministro Milton Ribeiro declarou que o “Enem tem, sim, a cara do governo” por ser tratado com “competência e honestidade”. Ele também negou as acusações de ingerência política e sugeriu que a demissão em massa seria por conta de um “ruído” por “gratificações”. Em outra ocasião, o presidente do Inep também mencionou as gratificações.
O presidente da Assinep, Alexandre Rematal, declarou que, se a motivação dos servidores fosse financeira, não teriam pedido demissão, pois isso reduz os vencimentos. Falou ainda que a insatisfação no órgão é generalizada, tanto entre os que recebem a gratificação mencionada por Ribeiro e Dupas, quanto entre os que não a recebem.
Histórico: Enem começou em 1998 com 157 mil inscritos
O Exame Nacional do Ensino Médio, o Enem, começou em 1998 como avaliação de escolaridade básica. Mesmo de forma voluntária, houve 157 mil inscritos. Três anos depois, alunos da rede pública ficaram isentos da taxa de inscrição, e o número de participantes saltou para 1,6 milhão.
Inicialmente, o valor da inscrição era R$ 20. Em 2000, aumentou para R$ 35. E, desde 2019, a inscrição é de R$ 85. Alunos da rede pública de ensino ou bolsistas integrais de colégios particulares que tenham renda familiar mensal de até 1,5 salário mínimo por pessoa estão isentos da taxa de inscrição conforme Lei Federal nº 12.799/2013.
O tempo da prova também mudou. Passou de 4 horas para 5. Antes, era concentrado em um único final de semana, mas desde 2017 está dividido em 2 domingos. O 1º é Ciências Humanas; Linguagens e Códigos; e redação. O 2º dia é das provas de Ciências da Natureza e Matemática.
O MEC (Ministério da Educação) criou em 2009 o Sisu (Sistema de Seleção Unificada) e adotou a teoria de resposta ao item. Essa metodologia permite que os itens de diferentes edições do exame sejam posicionados em uma mesma escala e avalia as dificuldades dos itens e a proficiência dos participantes.
Foi nesse mesmo ano que o Enem virou a principal forma de ingresso ao ensino superior por meio do Prouni (Programa Universidade para Todos), que oferece bolsas de estudo integrais e parciais para estudantes em universidades particulares.
Em 2013, a nota do Enem também serviu de oportunidade para 7 milhões concorrerem a bolsas de estudos do programa Ciência sem Fronteiras. No ano seguinte, houve um recorde de 8,7 milhões de candidatos na avaliação.
Universidades de Portugal, Estados Unidos, Canadá, Reino Unido, Irlanda e França também aceitaram a nota do exame para brasileiros ingressarem no ensino superior.
Como é elaborado o Enem?
O caderno de provas do Enem possui 180 questões, elaboradas por professores selecionados por meio de edital. Antes de serem selecionadas para o exame, elas são pré-testadas em escolas selecionadas pelo Inep e depois passam a integrar o BNI (Banco Nacional de Itens).
O acesso ao BNI é restrito, e funcionários precisam assinar um termo de sigilo. Ao final do 1º semestre do ano são selecionadas questões que vão compor a prova do Enem em conjunto com especialistas do Inep e professores de diversas instituições de ensino básico e superior.
No entanto, de acordo com as denúncias dos servidores, outro episódio que influenciou o atual clima dentro do Inep foi a entrada de um policial federal no dia 2 de outubro na sala protegida, conhecida como Afis (Ambiente Físico Integrado de Segurança), onde a prova do Enem é elaborada. Segundo a Folha de S.Paulo, isso ocorreu duas semanas após o presidente do Inep liberar “inspeção da PF” no local.
Os servidores disseram ser “incomum” tal prática e afirmaram que um documento foi apagado. O comando do Inep colocou sob sigilo o processo interno que apura a entrada do agente policial na sala segura do órgão. Procurada, a PF disse que o procedimento de vistoria é praxe e negou qualquer acesso a materiais didáticos ou questões de prova.
Deputados da oposição ainda pediram ao TCU (Tribunal de Contas da União) que afastasse o presidente do Inep por causa das supostas irregularidades no Enem. O pedido foi negado.
O coordenador de educação da Lupa e da Pace, Raphael Kapa, comentou em entrevista ao Correio Sabiá no último dia 19 sobre a possível instabilidade gerada com as acusações de supostas irregularidades na véspera da prova.
“O problema é que, por ser uma prova onde há diferentes pontos de aplicação, desde o interior do Amazonas até grandes metrópoles, perder ali o aparato logístico do instituto que faz a prova causa, sim, um ponto sensível que a gente pode acabar vendo problemas na aplicação”, disse.
Enem: menor número de candidatos desde 2005
As provas impressas e digitais do Enem deste ano estão marcadas para ocorrer, simultaneamente, nos dias 21 e 28 de novembro. Houve apenas 3.109.762 inscritos, sendo este o menor número desde 2005. De acordo com o coordenador da Lupa, Raphael Kapa, essa queda ocorreu por 2 motivos.
“Primeiro porque, no ano passado, os inscritos com isenção de taxa, que se ausentaram por receio de contaminação do coronavírus, perderam o direito à isenção de taxa este ano. A outra questão é que desde que o Enem deixou de ser uma avaliação para conseguir o diploma de ensino médio, passou a ter uma redução”, afirmou.
O MEC deixou de emitir a certificação de conclusão do ensino médio em 2017. Jovens e adultos precisam fazer o Encceja (Exame Nacional para Certificação de Competências de Jovens e Adultos).
Mais da metade dos candidatos faltou em 2020
Já em 2020, uma grande parte dos inscritos faltou à aplicação da prova. Ao todo, 51,6% dos inscritos no exame impresso não compareceram.
A proporção foi ainda maior para o teste digital, que foi aplicado pela 1ª vez em 31 de janeiro e 7 de fevereiro de 2021. Foram 93.079 inscritos. Destes, houve ausência de 68,5%, segundo o Inep.
Problemas em edições anteriores do Enem
As acusações de suposta ingerência política no Enem deste ano somam-se a outros impasses da prova no passado. Em 2009, por exemplo, o MEC suspendeu a aplicação do exame após suspeita de fraude.
Naquela ocasião, um caderno de provas foi furtado da gráfica. O prejuízo com a confecção de novas provas chegou a R$ 45 milhões, prejudicando mais de 4,1 milhões de estudantes inscritos.
No ano seguinte, 2010, houve atraso na divulgação do resultado. Isso fez com que a USP (Universidade de São Paulo) e a Unicamp (Universidade de Campinas) abandonassem o uso das notas do Enem para ingresso dos estudantes. Na mesma edição, o Inep divulgou o gabarito errado após confundir as cores dos cadernos. O erro só foi corrigido depois de alguns dias.
Em 2011, um professor usou algumas questões do Enem num teste com os alunos. Em 2014, circulou nas redes sociais imagens do exame horas antes da aplicação. Em 2016, o MEC adiou as provas para dezembro, porque manifestantes ocuparam 400 locais de aplicação de provas por todo o país.
Foi também em 2016 que os aplicadores passaram a coletar dados biométricos dos participantes do Enem para que outra pessoa não fizesse a prova no lugar do inscrito.
Apoie nossos voos
Fazemos um trabalho jornalístico diário e incansável desde 2018, porque é isso que amamos e não existe nada melhor do que fazer o que se ama. Somos movidos a combater a desinformação e divulgar conhecimento científico.
Fortalecemos a democracia e aumentamos a conscientização sobre a preservação ambiental. Acreditamos que uma sociedade bem-informada toma decisões melhores, baseadas em fatos, dados e evidências. Empoderamos a audiência pela informação de qualidade.
Por ser de alta qualidade, nossa operação tem um custo. Não recebemos grana de empresas, por isso precisamos de você para continuar fazendo o que mais gostamos: cumprir nossa missão de empoderar a sociedade civil e te bem-informado. Nosso jornalismo é independente porque ele depende de você.
Apoie o Correio Sabiá. Cancele quando quiser.