🚽 Saneamento: governo desfaz decretos que protegiam carentes

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Marco Legal do Saneamento Básico 2023: governo desfaz atualização que dava proteção social a municípios carentes; entenda

Cientista político, Lucas Nasra avalia que tendência é de privatização nas regiões de interesse da iniciativa privada e aumento do investimento público em regiões financeiramente deficitárias
Correio Sabiá explica as atualizações no marco do saneamento básico / Foto: Sigmund/Unsplash
Correio Sabiá explica as atualizações no marco do saneamento básico / Foto: Sigmund/Unsplash

*Assobio: A publicação original deste texto ocorreu no dia 7 de abril de 2023, às 16h18. No entanto, fazemos atualizações para te manter bem informada/o. Neste caso, o texto também tem opiniões pessoais do autor, já que Lucas Nasra é pesquisador (saiba mais sobre ele ao final do artigo). As opiniões não refletem, necessariamente, o que pensa o Correio Sabiá.

? Contexto/Cronologia: A Câmara aprovou, dia 3 de maio de 2023, um PDL (projeto de decreto legislativo) que desfazia parte dos decretos editados pelo presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e analisados abaixo. O projeto aprovado pelos deputados federais ainda precisava ser aprovado no Senado. Então, os decretos do Lula continuaram valendo –mesmo com o PDL aprovado na Câmara. Porém, depois, o próprio Lula revogou seus decretos, porque fez acordo com a oposição. Assim, os decretos elogiados abaixo, neste artigo, deixaram de valer mesmo. Ao avançar na leitura deste texto, saiba que a reflexão é sobre os decretos iniciais editados pelo presidente da República.

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) editou 2 decretos no dia 5 de abril de 2023 que atualizam o Marco Legal do Saneamento Básico, inaugurando uma nova etapa na regulação dos serviços de esgotamento sanitário e abastecimento de água potável em território nacional, iniciada em 2007 a partir da 1ª lei que regulou esse tipo de serviço (Lei nº 11.445, de 5 de janeiro de 2007).

Apenas 60,2% dos municípios brasileiros dizem ter rede de esgotamento sanitário, de acordo com os dados da Pesquisa Nacional de Saneamento Básico, de 2020, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística).

A falta de cobertura é maior em municípios financeiramente deficitários, ou seja, aqueles com baixa capacidade de investimento a partir de recursos próprios; ou que não possuem capacidade de expandir seus sistemas a partir da arrecadação das tarifas cobradas pelo serviço.

Foi a partir do argumento de baixa capacidade de investimento de municípios e estados que foi aprovada a Lei nº 14.026, de 15 de julho de 2020, que atualizou o Marco Regulatório do Saneamento Básico. Assim, esta norma instituiu novas condições para a privatização dos serviços de esgotamento sanitário, visando a ampliação de investimentos no setor via iniciativa privada.

No entanto, as regiões financeiramente deficitárias do país não são atrativas comercialmente, por não apresentarem retornos financeiros em curto e médio prazo. Isso representa uma barreira para que a iniciativa privada tenha interesse de investir nesses locais –que permanecem, portanto, em situação de vulnerabilidade.

É com o objetivo de garantir mais proteção social a estas regiões que o Lula atualiza o Marco Regulatório. Entre as principais mudanças está a previsão de investimentos federais focados em municípios deficitários e a priorização da prestação regionalizada dos serviços de água e esgoto (ou seja, formação de blocos contendo vários municípios sob responsabilidade da mesma empresa).

Também está prevista a revisão e comprovação da capacidade econômico-financeira de empresas públicas e sociedades de economia mista que possuem contratos de serviço de água e esgoto ativos. O objetivo é certificar que as empresas possuem capacidade de manter e expandir o serviço nas localidades em que operam, estando prevista a suspensão do contrato em caso negativo. O prazo para entregar os documentos requeridos pelas respectivas agências reguladoras é dezembro de 2025.

Desta forma, os decretos buscam oferecer mais segurança social às regiões mais carentes do Brasil, a partir da disponibilização de recursos próprios do governo federal para investimentos, revisão dos contratos em vigor e incentivo ao investimento privado no setor de saneamento básico, via PPP (Parcerias Público-Privadas), além da volta da possibilidade de municípios firmarem contratos de programa com empresas públicas, vetada pelo marco anterior. A expectativa é de que, somando-se investimentos privados e públicos, a meta de universalização seja alcançada até 2033

Contexto do saneamento básico no Brasil de 2023

O serviço de saneamento básico deve ser encarado como um conjunto de várias políticas públicas orientadas para a preservação do meio ambiente, a saúde e o acesso à água potável. Por saneamento básico, entendem-se os serviços de: 

  • limpeza urbana e manejo de resíduos sólidos
  • drenagem e manejo das água pluviais urbanas
  • abastecimento de água potável
  • esgotamento sanitário

Para os fins deste texto, iremos considerar apenas a coleta e o tratamento de esgotamento sanitário, na medida que este serviço é o mais deficitário no país e é objetivo principal dos marcos legais.

Atualmente, no momento de publicação deste texto no dia 7 de abril de 2023, uma sexta-feira, apenas 60,2% dos municípios brasileiros declararam possuir rede de coleta e tratamento de esgoto, segundo dados da  Pesquisa Nacional de Saneamento Básico

O mesmo estudo aponta que o Brasil avança lentamente nos níveis nacionais de cobertura. Considerando a série histórica, o Brasil apresentava em 1989, 47,3% de seus municípios contemplados, percentual que avançou para 52,2%, em 2000; 55,2%, em 2008, chegando aos atuais 60,3% medidos em 2017, último ano da série. 

Nota-se, portanto, um aumento de apenas 13% de municípios que se autodeclaram portadores de sistema de esgotamento sanitário num intervalo de 28 anos

Os dados se tornam ainda mais preocupantes se considerados em suas desigualdades regionais. Enquanto em 2017, 96,5% dos municípios do Sudeste declararam ter o sistema implementado, apenas 16,2% das cidades localizadas na região Norte encontram-se contempladas. Os piores indicadores são seguidos pela região Centro-Oeste (43%); Sul (44,6%) e Nordeste (52,7%). 

(Parênteses: vale ressaltar que a metodologia empregada pelo IBGE neste estudo considera como unidade de análise os municípios brasileiros com informações fornecidas ao Sistema Nacional de Informação sobre Saneamento pelos mesmos, e o sistema considerado é o de rede coletora.)

Segundo os dados referentes a 2021 do SNIS (Sistema Nacional de Saneamento Básico), que em sua metodologia considera como unidade de pesquisa as residências familiares, o cenário do esgotamento sanitário se apresenta ainda mais preocupante

A fonte oficial do governo informa que apenas 55,8% da população brasileira possui acesso a esgotamento sanitário. O SNIS avalia que só cerca de  51% do esgoto produzido em território nacional é devidamente tratado. Os níveis de cobertura do sistema acompanham as desigualdades regionais descritas pelo IBGE, apresentando o Sudeste como o melhor cenário, com 81,7% do esgoto tratado; e a região Norte como o pior cenário (14%).

O que significam esses dados? O déficit apresentado até aqui representa perdas ambientais inestimáveis a partir do despejo de esgoto não tratado in natura, além de representar uma das diversas causas de problemas de saúde relacionados à má gestão de recursos hídricos. 

Em complemento, o Instituto Trata Brasil realiza anualmente um relatório chamado Ranking do Saneamento. O objetivo é mapear a situação das 100 maiores cidades brasileiras para estimar índices nacionais, segundo a metodologia usada. O último relatório disponível no momento de publicação deste texto, de 2023, aponta que são despejados o equivalente a 5.336 piscinas olímpicas de esgoto não tratado por dia no meio ambiente

Por fim, entre as modalidades de prestação de serviço de esgotamento sanitário, o SNIS informa que 81,42% são prestados pela Administração Pública Direta; 13,71% por Autarquias; 3,70% pela Iniciativa Privada; 0,87% por Empresas de Economia Mista; 0,18% por empresas públicas e 0,12% por Organizações Sociais. Nota-se uma predominância da prestação pública pelo serviço

Politicamente, o tímido aumento da cobertura nacional entre 1989 e 2017 foi considerado como ineficiência do poder público em prestar o serviço. Tal argumento embasou a atualização do Marco Legal em 2020 pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL). A nova lei visava fornecer segurança jurídica para processos de privatizações de empresas estaduais de água e esgoto, além de obrigar os municípios a realizar licitações para o serviço com ampla concorrência ao fim dos contratos de programa (contratações realizadas diretamente sem licitação pelas prefeituras) firmados antes da edição da lei. 

No entanto, o Marco Legal de 2020 não endereçou a questão das desigualdades regionais do serviço de esgotamento sanitário. (Aliás, a situação de municípios em vulnerabilidade tenderia a se agravar. Isso porque, além da extinção da modalidade de contratos de programa, foram proibidos os subsídios cruzados que garantiriam a “modicidade tarifária”, ou seja, que a tarifa fosse acessível aos usuários em regiões carentes). 

O objetivo seria induzir tais municípios a formarem blocos de referência a serem submetidos a processos de licitação por ampla concorrência, esperando-se assim um aumento do investimento privado no setor. 

Expectativa não se confirmou, já que a iniciativa privada não se interessou em investir em municípios que só apresentariam rentabilidade pelo serviço no longo prazo. Mais: a baixa capacidade de investimento no setor pelo poder público se manteve inalterada e os déficits permaneceram. 

Apesar do aumento de dinheiro em investimentos absolutos em esgotamento sanitário (de R$ 5,89 bilhões em 2020, para R$ 7,35 bilhões em 2021, segundo o SNIS), a quantia ainda é considerada insuficiente para atingir a meta de universalização até 2033.

Os decretos assinados no dia 5 de abril de 2023 por Lula visam corrigir as desigualdades descritas até aqui.

Nos links abaixo, a íntegra dos decretos, como determinam nossas Políticas Editoriais disponíveis na seção Quem Somos deste site:

  1. Estabelece (PDF) a metodologia para comprovação da capacidade econômico-financeira dos prestadores de serviços públicos de abastecimento de água potável ou de esgotamento sanitário, considerados os contratos em vigor, com vistas a viabilizar o cumprimento das metas de universalização.
  2. Trata (PDF) da prestação regionalizada dos serviços públicos de saneamento básico.

Entenda o Novo Marco Legal do Saneamento Básico

Até a edição dos decretos de Lula, a última atualização na legislação relativa ao saneamento básico tinha ocorrido em julho de 2020, por meio do Novo Marco Legal do Saneamento Básico, no governo Bolsonaro. 

A 1ª regulação direta do saneamento básico no Brasil ocorreu em 2007. Até então, os serviços eram timidamente regulados por dispositivos constitucionais que não tinham um entendimento unificado na doutrina jurídica brasileira, além de leis relacionadas à gestão de recursos hídricos. 

A edição da Lei nº 11.445/2007, portanto, pacificou o entendimento jurídico de diversas questões, como: titularidade municipal, necessidade de participação social nos processos decisórios e garantia de modicidade tarifária em áreas carentes. 

Se o Marco Legal de 2007 pode ser entendido como uma tentativa de enquadrar o saneamento básico como um direito social (estabelecendo diretrizes nacionais para a sua implementação), o Marco Legal de 2020 pode ser considerado como “privatista”, tendo em vista que visa oferecer segurança jurídica a processos de privatização, sem estabelecer uma contrapartida social que proteja municípios que não são de interesse da iniciativa privada.

A atualização realizada por Lula, via decretos, parece ter como objetivo equacionar os 2 marcos anteriores. Isso porque, ao passo que garante as possibilidades de privatizações previstas no Marco Legal de 2020, também flexibiliza a regra que proibia a realização de contratos de programa (sem licitação) entre municípios e empresas públicas, além de estabelecer que recursos públicos federais sejam destinados diretamente a cerca de 1,1 mil municípios comprovadamente deficitários. 

Além disso, os decretos também representam um esforço de maior integração entre os níveis municipais, estaduais e federais, já que mantém a prerrogativa de titularidade conjunta dos estados com municípios em caso de regiões metropolitanas, inseridas pelo Marco Legal de 2020, por exemplo. Além de estimular a formação de blocos regionais que agreguem municípios mais e menos rentáveis sob a mesma administração; 

A lógica indica, portanto, uma tendência de privatização nas regiões que sejam de interesse da iniciativa privada; assim como um aumento do investimento público em regiões deficitárias. Com a medida, o governo espera elevar o montante de investimentos anuais em saneamento básico para cerca de R$ 13 bilhões.

Quem é Lucas Nasra, autor deste texto?

Lucas Nasra, 30 anos, é Bacharel em Ciência Política pela UNIRIO, Mestre em Ciências Sociais e doutorando em Ciências Sociais pela PUC-Rio. Especialista em políticas públicas de Saneamento Básico. Atualmente é pesquisador no NUFEPD/PUC-Rio (Núcleo de Pesquisa sobre federalismo Política e Desenvolvimento) e realiza pesquisas na área de saneamento básico e políticas urbanas a nível municipal, estadual e federal, refletindo sobre a relação entre administração pública, direito público e teoria política, na busca por universalização do serviço de esgotamento sanitário no Brasil.

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