O Brasil na era do Piroceno? Fogo não é incontrolável, atestam pesquisadoras

Incêndios mais frequentes e intensos devido às mudanças climáticas e ação humana têm resposta no manejo

O Brasil na era do Piroceno? Fogo não é incontrolável, atestam pesquisadoras
Diretora de Ciência do IPAM, Ane Alencar: "no Brasil é a ação humana que provoca os incêndios" / Imagem: Vera Arruda/IPAM
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Com o pior número de focos de incêndio desde 2010, e dados de mais 4 meses ainda por vir, 2024 entra para a história do Brasil e do mundo como ano permeado por eventos climáticos extremos. O Piroceno, conceito recente e em debate na ciência, busca traduzir uma época na qual as chamas teriam fugido do controle humano, mas pesquisadoras especialistas na área atestam: o fogo não é incontrolável.

O piroceno foi divulgado há 5 anos pelo historiador norte-americano Stephen Pyne, em um artigo publicado no site The Conversation, depois dos incêndios na Califórnia em 2019. A premissa é de que a Terra estaria entrando em uma nova era moldada pelo fogo, em uma equivalência de efeitos opostos à era do gelo. Para Pyne, a história do fogo engloba até mesmo a do clima, tendo a ignição como motor da queima de combustíveis fósseis.

As pesquisadoras Ane Alencar, diretora de Ciência do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia) e Erika Berenguer, cientista sênior da Universidade de Oxford e da Rede Amazônia Sustentável, concordam que, se nenhuma medida for tomada, os incêndios continuarão se espalhando e constituindo um cenário digno do termo. No entanto, ressaltam que o fator humano, muitas vezes responsável por atear o fogo nos biomas brasileiros, é justamente o que pode e deve impor limites ao uso desta ferramenta.

“É difícil afirmar a causa dos incêndios em outros lugares do planeta. A Califórnia, nos Estados Unidos, o Canadá, a Austrália, regiões de Portugal e do Mediterrâneo são áreas com característica de adaptação, dependência e/ou resistência ao fogo, ou seja, que têm o fogo como parte da ecologia. Já no Brasil, sabemos que o fogo não faz parte da dinâmica de biomas como a Amazônia, e mesmo no Cerrado, com características pirogênicas, esse fogo está ocorrendo fora da época em que seria ocasionado por fontes de ignição natural, como raios. Portanto, no Brasil é a ação humana que provoca os incêndios e, sobre este comportamento, nós temos controle, alerta Alencar.

Plataforma - MapBiomas Brasil
MapBiomas tem uma iniciativa para monitorar área queimada no Brasil / Imagem: Vera Arruda/IPAM

Os 2 biomas mais queimados no Brasil têm relações distintas com o fogo. Na Amazônia, uma floresta tropical úmida, não há ocorrência de fogo de forma natural. Os cientistas são categóricos em afirmar que “a floresta não pega fogo sozinha”, sendo assim, a ignição humana se faz primordial para os incêndios no bioma.

Já o Cerrado é adaptado ao fogo que ocorre naturalmente em seus ecossistemas, mas a questão é que esse fogo natural do bioma, quando acontece, é nas épocas de chuva, causado por raios. Mesmo assim, quando há algum tipo de fogo de raios no Cerrado, as chamas não se alastram e logo apagam pelo fato de a vegetação estar molhada. Só que nos últimos 5 anos, 60% da área queimada no Cerrado ocorreu no período seco, principalmente nos meses de agosto e setembro, um indicativo da influência humana no bioma.

A proposta da era do piroceno coloca em perspectiva 2 momentos diferentes da história da humanidade na Terra:

  1. Quando a espécie começa a usar o fogo como arma e para cozinhar alimentos, portanto, aprendendo a controlá-lo; e
  2. A época atual, na qual o ser humano estaria perdendo este controle frente aos megaincêndios, por exemplo –os que abrangem uma área maior que 10 mil hectares.

“O piroceno é cada vez mais uma realidade, talvez dentro do antropoceno, uma época, também sendo discutida por acadêmicos, em que o ser humano está mudando muito a forma de lidar com o ambiente e esse ambiente está reagindo de volta. Neste sentido, o fogo estaria mais presente, seja porque as pessoas estão usando mais ou porque as condições ambientais fazem com que ocorra de forma mais frequente e violenta. Mas o fogo não é incontrolável, principalmente nas regiões tropicais, em que ele é usado como ferramenta produtiva”, acrescenta Alencar. 

A diretora de Ciência do IPAM é responsável pela criação do conceito de cicatrizes do fogo, em 1996, ao definir as áreas afetadas por incêndios florestais na Amazônia a partir de imagens de satélite impressas. A descoberta transformou os estudos de monitoramento no Brasil e levou à criação dos produtos de área queimada anual e mensal do MapBiomas Fogo, coordenada por Alencar, que publica anualmente e mensalmente mapas das cicatrizes do fogo no país. 

De janeiro a agosto de 2024, segundo dados da rede no Monitor do Fogo, foram mais de 5,4 milhões de hectares queimados na Amazônia brasileira, um aumento de 88% na comparação com o mesmo período do ano passado. No Cerrado, a alta foi de 85%, com mais de 4 milhões de hectares queimados para o intervalo em 2024. Juntos, os 2 biomas somam 83,4% da área afetada pelo fogo no país nos 8 primeiros meses do ano. O Pantanal, com 1,2 milhões de hectares queimados –e sendo quase 5 vezes menor que a Amazônia– representa 11% da área queimada em território nacional neste ano. 

“Falar do piroceno é uma forma de trazer atenção para ecossistemas do mundo inteiro que estão passando por mudanças fundamentais. Mas este não é um fenômeno incontrolável. O que a gente precisa é diminuir nossas emissões e lidar com as mudanças climáticas. Dessa forma, a gente consegue ter um controle maior sobre esse regime de incêndios, que já está modificado no mundo todo”, diz Erika Berenguer.

A cientista sênior da Universidade de Oxford conduz, há 14 anos, um trabalho de pesquisa de campo da Rede Amazônia Sustentável na Floresta Nacional do Tapajós para avaliar os efeitos do fogo na região. A Flona do Tapajós passou por um incêndio de grandes proporções em 2023, com efeitos em avaliação. Antes, em 2015, mais de 1 milhão de hectares queimaram na unidade de conservação, tendo como uma das consequências a morte de 2,5 bilhões de árvores. 

“Há uma série de motivos para ecossistemas do mundo inteiro estarem passando por mudanças no regime do fogo. Em 1º lugar, as mudanças climáticas: a gente vive em um mundo mais quente do que na época pré-industrial. Quanto mais quente, mais chances de a vegetação pegar fogo. Em 2º lugar, as mudanças no uso do solo. No caso da Amazônia, quando uma área é desmatada, a floresta que é adjacente à área desmatada começa a sofrer com uma série de efeitos que não sofria antes, porque antigamente era um grande bloco de floresta. Com as bordas viradas para a agricultura, entra muito mais vento, luz e tudo isso vai ressecando a floresta”, comenta Berenguer.

A cientista sênior da Universidade de Oxford, Erika Berenguer / Imagem: Bibiana Garrido/IPAM

Um dos motores dos incêndios na Amazônia é a grilagem. Nos 8 primeiros meses do ano, as Florestas Públicas Não Destinadas no bioma tiveram um aumento de 175% na área queimada. Estes locais costumam ser alvo da grilagem que desmata e queima áreas para a tentativa de apropriação, ao colocar pasto e gado no lugar da vegetação nativa. As Florestas Públicas Não Destinadas aguardam uma definição, por parte do poder público, sobre os fins de uso para criar novas unidades de conservação ou terras indígenas, por exemplo. 

Entre os impactos do fogo na maior floresta tropical do mundo estão:

  • a mortalidade da biodiversidade;
  • a perda de serviços ecossistêmicos como o equilíbrio climático e do ciclo de chuvas na maior parte do país e da América do Sul;
  • as emissões tardias (uma área de floresta queimada uma vez pode continuar emitindo gases do efeito estufa por 10 anos);
  • a maior vulnerabilidade a outros incêndios; e
  • a perda de biomassa (o fogo pode causar a perda de até 25% da biomassa da floresta e de 50% das árvores). 

No Cerrado, o fogo ocorre em áreas agropecuárias, mas também em áreas de vegetação nativa. De janeiro a agosto deste ano as savanas concentraram 41,7% da área queimada no Cerrado. Os impactos do fogo no bioma têm mais a ver com as características do fogo. Segundo Alencar, um fogo brando no Cerrado, com um intervalo apropriado para um tipo de vegetação, tem regeneração rápida. 

“Mas, se o fogo for intenso, ainda mais em uma área úmida, como as veredas, ele queima até o subsolo, queima matéria orgânica rica nesse tipo de solo mais alagado e acaba afetando até as raízes. Essa é a destruição total, pior do que um incêndio na Amazônia. É uma questão parecida com um tipo de fogo subterrâneo que ocorre no Pantanal, o incêndio subterrâneo”, explica Alencar.

Ainda no artigo que inaugurou a proposta do piroceno, Stephen Pyne também diferenciou o fogo bom do fogo ruim no caso dos incêndios na Califórnia em 2019. Naquele ano, mais de 105 mil hectares foram queimados no estado norte-americano. Por medidas ao estilo ‘fogo zero’, a região pirogênica havia deixado de ter o seu fogo bom  –algo como o fogo natural no Cerrado brasileiro, por exemplo– e, por isso, acabou acumulando o material combustível que intensificou os incêndios de anos atrás. 

O fogo bom no Cerrado brasileiro, por sua vez, pode significar o despertar de sementes que só germinam com o calor das chamas.

“Do ponto de vista ecológico, fogo bom é aquele que ocorre e não causa danos, que faz parte da ecologia do bioma. Normalmente, um fogo bom é capaz de catalisar um processo de restauração. Enquanto que o fogo ruim é todo aquele que realmente impacta a capacidade de recuperação dessas áreas”, afirma Alencar. 
Manejo Integrado do Fogo, chamado de MIF, virou lei em 2024 / Imagem: Vera Arruda/IPAM

A Política Nacional de Manejo Integrado do Fogo virou lei no Brasil em julho de 2024 e prevê a redução dos incêndios no país, bem como o reconhecimento do papel ecológico do fogo nos ecossistemas e o respeito às práticas de povos e comunidades tradicionais com o uso da ferramenta. O MIF, como convencionou-se a sigla, consiste, resumidamente, em 3 frentes de ação: o manejo do fogo, a cultura do fogo e a ecologia do fogo, trabalhando aspectos de conscientização, prevenção e combate. Nesta prática, o fogo pode ser usado ao encontro de incêndios para controlar as chamas, em uma técnica chamada ‘contrafogo’. 

“O Manejo Integrado do Fogo tem a ver com controle do uso do fogo. Leva em consideração os aspectos ecológicos, se o ambiente precisa ou não do fogo naquele momento, os aspectos socioeconômicos, se as pessoas usam ou não o fogo, e os aspectos científicos e técnicos. O MIF diz que o uso do fogo tem que ser feito, se for feito, de forma controlada e de forma a gerar benefícios ecológicos, culturais e socioeconômicos”, diz Alencar. 

As técnicas do MIF são comumente usadas no combate a incêndios no Cerrado, por exemplo. Na capital federal, um incêndio atingiu 45,8% da Floresta Nacional de Brasília na ‘temporada do fogo’ de 2024, quando as condições de seca e vento favorecem o alastramento das chamas. 

No Brasil, os focos de calor na temporada atingiram principalmente a Amazônia, o Cerrado e o Pantanal. Mas, ao menos os 2 primeiros são figurinha carimbada todos os anos em área queimada. Desde 1985, o Cerrado é o bioma mais queimado do país. O cenário em 2024 é agravado pela pior estiagem desde o início dos registros, de acordo com o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais). 

Os esforços no combate aos incêndios envolvem a atuação de brigadistas, sejam comunitários, voluntários, contratados do Prevfogo, do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais) ou do ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade). Há ainda o trabalho de bombeiros e militares. No entanto, como prescreve o próprio MIF, a redução dos incêndios não depende somente do combate. Essa, na verdade, é a última etapa, a última possibilidade de ação em um processo que, se conduzido de maneira adequada, não culminaria em um incêndio.

“Portugal, Austrália ou a própria Califórnia, estão atualizando cada vez mais os seus sistemas de prevenção e combate a incêndios, justamente para lidar com isso. Portanto, quando a gente analisa a nível global, o Brasil ainda não está preparado. Se a gente estivesse preparado, não teria que viver essa situação que estamos passando agora, com uma paisagem altamente inflamável, na qual o fogo consegue se propagar facilmente. A gente precisa mudar para conseguir lidar com uma era em que o fogo é muito mais presente”, avalia Berenguer.

Segundo o Ministério da Justiça, 457 agentes da Força Nacional foram enviados a diversas localidades para o combate aos incêndios no país. O Governo Federal divulgou que foram liberados R$ 514 milhões para ações emergenciais de combate aos efeitos dos incêndios e da estiagem, com 3.518 profissionais em campo atuando em operações de combate. Estes brigadistas, conforme comunicado, já ajudaram a controlar quase 80% do fogo. A Polícia Federal abriu 101 inquéritos para investigar a responsabilidade humana nos casos.

Há mais de 100 inquéritos abertos pela PF para apurar responsabilidade humana pelos casos de fogo em diferentes biomas brasileiros / Imagem: Vera Arruda/IPAM

*Bibiana Garrido e Marcelo Freitas são jornalistas do IPAM (Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia). A publicação no Correio Sabiá ocorre por parceria entre as duas organizações.


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